Vim tomar conta do menino |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 306
No
fim da tarde de verão um fogaréu queimava o céu de Tocaia Grande, fulguração de
vermelhos e amarelos.
Entregando a Edu a pata da égua para que o
rapazola completasse o serviço com o puxavante, Tição, fixando a vista,
enxergou a silhueta de um vivente,
esbatida contra as luzes e as sombras do pôr-do-sol.
No pensamento do ferrador de burros
perpassou uma idéia fugaz e absurda: ia por fim tirar a limpo o mistério que
cercava a aparição de Alma Penada em Tocaia Grande.
Decorridos tantos anos, alguém vinha por
ele, disposto, quem sabe, a reavê-lo.
Vago perfil de mulher, envolto em luz e em
poeira, o vulto se abaixou, largou no chão a trouxa de viagem para melhor
receber e retribuir os afagos do cão.
Naquele preciso momento, sem enxergar-lhe
as feições nem o contorno da figura, o negro soube de quem se tratava: só podia
ser ela e mais ninguém.
Desde que partira, jamais dera notícia. Tição
manteve-se parado, à espera, sem manifestar reação qualquer que fosse: morto
por dentro, vivo apenas na aparência.
Ao menos assim corria no arraial: a
verdadeira alma penada na oficina era o ferreiro e não o cão. Passo maneiro, corpo
sacudido, o bamboleio dos quadris, Epifânia se aproximou, o rosto sério.
Comedida nos modos, sem espalhafatos, não arreganhava
os dentes, não se desfazia em
dengue. Nem parecia aquela lambanceira e atrevida, luxenta,
que virava a cabeça dos homens e perturbava a paz.
Parou diante de Tição, o atado sob o braço,
o cachorro saltitando em redor:
- Vim tomar conta do menino. Andei sumida,
tava amigada.
Trasantonte encontrei Cosme, ele me
contou. Fiquei sentida.
A voz serena e firme:
- Cadê ele, o meu menino? Não vou embora
nem que tu mande.
Sem esperar resposta, andou para a porta
da oficina, seguida por Alma Penada, entrou casa adentro. Lavado em sangue, o
sol afogava-se no rio.
2
Em companhia da neta Aracati, cujos qui nze anos não haviam festejado devido à febre que
grassara no inverno, sia Leocádia percorreu a meia légua que mediava entre as
plantações dos estancianos e as do povo de Vanjé.
Valente andarilha apesar do fardo da idade
a lhe vergar os ombros, a moleca devia aligeirar o passo para acompanhá-la.
Iam as duas conversando sobre assuntos
insólitos naquelas capoeiras. Discutiam trajes de pastoras, pastoras de
estrelas conforme davam a perceber, e se referiam a personagens cujos nomes e
títulos ressoavam estranhos e sedutores: Dona Deusa, Besta-Fera, Caboclo
Gostosinho.
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