Além de luterano, anarquista |
Tocaia Grande
(Jorge Amado)
Episódio Nº 352
O centro da feitiçaria se encontrava instalado
na oficina do ferrador de burros, um réprobo.
Frei Zygmunt Martelo de Deus projectava
levantar o ânimo dos fiéis durante os sermões, quem sabe conseguiria levá-los a
destruir o ímpio altar erguido por detrás da forja para os monstruosos diabos
africanos que os negros, libertos da escravidão através de conjuras e trampas da Maçonaria, chamavam de
encantados e procuravam vestir com o manto luminoso dos bem-aventurados.
Sacrilégio!
15
Repousando do bárbaro - e delicioso! - jantar
de frutas e caças, ao fim daquele primeiro dia de Santa Missão, frei Theun lastimou,
condoído e compassivo, a sorte daqueles pecadores, vítimas da ignorância e do
atraso, cujas almas estavam condenadas ao inferno sem que talvez o merecessem.
Era sobretudo a falta dos códigos morais,
da rédea das leis, da contenção imposta pelas regras, que os levava à prática
de tamanhos erros, a viver em estado de delinquência e culpa.
Seu Carlinhos Silva, falando alemão com
fluência e pronúncia de letrado - um mulato sarará, imagine-se! Surpresas a que
estão sujeitos frades mendicantes cm Santa Missão - , com voz pacata e afável,
assim como quem não quer nada mas vai dizendo as coisas, defendeu o lugar e o
povo do lugar.
Parecia um professor dando aula na cátedra
de Weimar e frei Zygmunt o examinou com os olhos de suspeita. Com razão, pois o
mestiço inocentou aquela gentalha de qualquer culpa.
Os habitantes de Tocaia Grande - disse ele
- ali viviam à margem de ideias preconcebidas, desobrigados das limitações e
dos constrangimentos decorrentes das leis, livres dos preconceitos morais e
sociais impostos pelos códigos, fosse o código penal, fosse o catecismo.
Gente mais ordeira do que a de Tocaia
Grande, apesar do nome e dos maus costumes, não havia em toda a região do
cacau, no país dos grapiúnas.
E sabem por que, meus reverendos? Porque aqui ninguém manda em ninguém, tudo se faz de comum
acordo e não por medo de castigo.
Se dependesse de seu Carlinhos Silva,
jamais essa paz seria perturbada, esse viver feliz do povo de Tocaia Grande
que, a seu ver, merecia com certeza o agrado de Deus, do verdadeiro.
- Se
vossas reverendíssimas me permitem opinar, eu lhes direi que aqui se encontra o procurado paraíso natural dos sábios...
Ergueu-se num supetão frei Zygmunt
Gotteshamraer, Martelo de Deus, derrubando o prato de flandre, o rosário na mão
como se fora um látego levantado contra o pecado e os pecadores e, em especial,
contra o herege em sua frente.
Em Ilhéus haviam-lhe informado que esse
mestiço e filho natural fora educado na Alemanha e tinha fumaças de doutor:
inimigo da Igreja de Roma, era um infame luterano, talvez ainda mais pernicioso
do que os macumbeiros, com certeza mais perigoso do que o maronita.
Símbolo do que existia de pior no mundo:
arauto das infames ideias da Revolução Francesa, dos enciclopedistas, dos
inimigos de Deus e da monarqui a, dos
petroleiros incendiários, de bomba em punho contra os imperadores e a nobreza,
de punhal erguido para de novo rasgar o coração de Jesus Cristo.
Além de luterano, anarqui sta!
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