Linda, na sua nudez de mulher. |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 10
DA PRECE PELA SAÚDE DA VELHA TIA DESCONHECIDA, CAPÍTULO CASTO E
NOVO
…vida, doçura, esperança nossa, salve! As palavras da oração nascem sinceras e sentidas da incómoda espinha, do nebuloso pesar. Ma
Vida, doçura e esperança, a tia de São Paulo, que não esteja defunta como
garante a mãe – a mãe vê tudo em luto – que se afirme a crença da tia Elisa e o
perigo desapareça, a Vós bradamos os degredados filhos de Eva. A Vós suspiramos
e oferecemos pela saúde da tia Antonieta um rosário rezado de joelhos sobre
grãos de milho. Promessa mixa, mísera oferta em paga de portentoso milagre.
Dá-se conta e, exagerado, amplia para uma semana inteira de rosários completos
e macerados joelhos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas, salvai da morte
a tia Antonieta.
Que doença a matara ou a estava matando? Nenhuma referência ouvira, a mãe e a
tia Elisa devem saber mas guardam segredo, na certa por se tratar de doença
ruim, cujo nome não se pronuncia, tísica ou câncer.
Quem comunicara a notícia, como chegara, em carta, em telegrama? Quando o pai
de Austragésilo faleceu, houve um primeiro telegrama anunciando estado de saúde
grave com hemopt ise. Duas horas
depois o Reitor do Seminário viera em pessoa com um segundo telegrama, o fatal,
e palavras de consolo. Apertara Austragésilo contra o peito, falara sobre o
reino dos céus. Do mesmo modo agora, o primeiro telegrama já chegara
comunicando doença e diagnóstico pessimista.
A mãe, experiente da vida, percebera o engodo, a intenção de prepará-los para o
pior; tia Elisa só perderia a esperança quando o segundo afirmasse a verdade
nua e crua. Neste vale de lágrimas eis pois advogada nossa, para Vós Mãe de
Nosso Senhor o impossível não existe; podeis interromper o custo dos
telegramas, revogar sentenças de morte, o Filho atende todos os Vossos pedidos.
Contrito, Cardo renova a promessa sete vezes maior. Promessa e tanto.
Zero sobre a doença, e sobre tia Antonieta? Zero vezes zero, imprecisas,
fugazes notícias, tia desconhecida, quase uma abstracção. Não obstante ninguém
tão concreto, presente, indispensável na vida de cada um deles, de toda a
família. A tia de São Paulo, a ricaça.
Para Ricardo apenas um nome, um apelido de infância, Tieta, vagas e
entusiásticas referencias ao marido milionário e comendador, mensalmente a
carta e o cheque, os presentes a bola de futebol número cinco, dando solidez e
contorno a uma imagem, que imagem?
Olhos misericordiosos a nós volvei, neste vale de lágrimas, de pobreza e
limitações, a imagem da santa padroeira, a protectora a possibilitar pequenas
regalias e o dinheiro que a mãe deposita na Caixa Económica para a festa da
primeira missa, ainda tão distante, e para os estudos de Peto se um dia Peto se
dispuser a estudar.
Ao pensar na tia jamais vista, não a compara com a Virgem a
quem roga por ela e, sim, com a Senhora Sant’Ana, padroeira da cidade, protectora
da família, da sagrada família e de todas as demais. Na chama das velas enxerga
a imagem da velha senhora, de mãos generosas, plena de ternura, doce patrona.
Será assim débil anciã ou ainda se mantém rija e disposta, igual à mãe? Qual
das duas a primogénita? Sobre a idade da tia, Ricardo nunca ouviu a menor
referencia, a mãe diminui a sua quando perguntada. A ausente deve ser bem mais
velha, não é ela a rica, a poderosa, a doadora, o verdadeiro chefe da família,
a quem o próprio avô reverencia? Boca de praga e maldições, a resmungar queixas
e ameaças, o avô desmancha-se em louvores ao pronunciar o nome de Tieta.
Deus lhe dê saúde e aumente a fortuna, ela merece a boa filha. Anciã de passo
cansado, cabelos brancos – ou ela ainda pinta os cabelos como outrora? Na chama
das velas são brancos os cabelos da tia Antonieta.
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