segunda-feira, novembro 09, 2015

ROMANCE



Em toda a beleza da sua nudez de mulher.
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 1




























Pastora de Cabras - Ou A Volta da Filha Pródiga, 






Silêncio e solidão, o rio penetra mar adentro no oceano sem limites sob o céu despejado, o fim e o começo. Dunas imensas, límpidas montanhas de areia, a menina correndo igual a uma cabrita para o alto, no rosto a claridade do sol e o zunido do vento, os pés leves e descalços pondo distância entre ela e o homem forte, na pujança dos quarenta anos, a persegui-la.

Arfando, o homem sobe, o chapéu na mão para que não voe e se perca. Os sapatos enterram-se na areia; o reflexo do sol cega-lhe os olhos; agudo fio de navalha, o vento corta-lhe a pele; o suor escorre pelo corpo inteiro; o desejo e a raiva - quando te pegar, peste! Te arrombo e mato.

A menina volta-se e olha, mede a distância a separá-la do mascate, o medo e o desejo: se ele me pegar vai meter em mim, estremece apavorada; mas, se eu não esperar, ele desiste, ah!, isso não, não pode permitir mesmo que queira pois o tempo é chegado.

O homem também parou e fala, grita palavras que não alcançam a menina, perdidas na areia, levadas pelo vento. Ela não houve mas advinha e responde:

- Bééé! – Assim cantam as cabras que ela pastoreia.

O desafio bate na face, penetra nos ovos do mascate, ergue-lhe as forças, ele avança. Atenta, a menina espera.

Lá atrás o rio, na frente o oceano, os olhos adolescentes percorrem e dominam a paisagem desmedida. Naquele momento de espera, de ânsia e de angústia, a menina fixou na memória a deslumbrante da cama de noiva que lhe coube.

Do outro lado da barra, a beleza da praia larga e rasa do Saco, em mar de águas mansas, no Estado de Sergipe, a ampla aldeia de pescadores, com armazém, capela e escola, um vilarejo.

O oposto dos cômoros monumentais onde ela se encontra, a invadirem as águas, o espaço do mar, contidos pelos vagalhões na fúria da guerra. Aqui o vento deposita diária colheita de areia, a mais alva, a mais fina, escolhida a propósito para formar a praia singular de Mangue Seco, sem comparação com nenhuma outra, aqui onde a Baía nasce na convulsa conjunção do rio Real com o oceano.

Dúzia, dúzia e meia de casebres provisórios, mudando-se ao sabor do vento e da areia a invadi-los e soterrá-los, morada dos poucos pescadores a habitar desse lado da barra.

Durante o dia, as mulheres pescam no mangue de caranguejos, os homens lançam as redes ao mar. Por vezes partem em pesca milagrosa, audazes a cruzar os vagalhões altos como as dunas nos únicos barcos capazes de enfrentá-los e prosseguir mar afora, ao encontro marcado com navios e escunas, em noites de breu, para o desembarque do contrabando.

O falso mascate vem na lancha a motor recolher as caixas de bebidas, de perfumes, os fardos de seda italiana de casimira e linho ingleses, outras especiarias, e fazer o módico pagamento – dinheiro para a farinha, o café, o açúcar, a cachaça, o fumo de rolo.

De quando em quando, trás uma vadia na lancha e enquanto caixas e fardos são transportados dos casebres, vai despachá-la nas dunas, sobre as palhas dos coqueiros para aproveitar o tempo. Um garanhão, o mascate; os pescadores o apreciam. Em mais de uma ocasião ele não os acompanhou nos barcos, indiferente às vagas até o alto mar de navios e tubarões?

A menina deixa que o homem chegue perto – só então dispara areia acima e do alto novamente canta o exigente e assustado chamado das cabras, Bééé! De amor não conhece outra expressão, outra palavra, outro som.

Ainda naquele dia o ouvira da cabrita no primeiro cio quando o bode Inácio, pai do rebanho, se encaminhou para ela, balançando o cavanhaque e as trouxas.

Depois o mascate apareceu e a menina aceitou o convite para o passeio de lancha, vinte minutos de rio, cinco de mar agitado e o esplendor de Mangue Seco. Como resistir, dizer obrigado mas não vou? Mentira: não a seduzira a corrida do rio, a travessia do pedaço de mar, nem sequer as dunas bem amadas desde a infância.

A menina não tenta inocentar-se. Recusara convites anteriores, o mascate a tinha de olho há tempos. Desta vez agora ela disse vamos, sabendo ao que ia.

Quando, porém, sente a mão pesada segurar-lhe o braço o medo a invade inteira, da cabeça aos pés. Contem-se, no entanto não busca fugir.

O homem a derruba sobre as folhas dos coqueiros, suspende-lhe a saia, arranca-lhe a calçola, trapo sujo. De joelhos sobre ela, enterra o chapéu na areia para que não voe e se perca, abre a braguilha. 

A menina o deixa fazer e quer que ele o faça. Para ela soara o tempo, como para as cabritas a hora temida e desejada, a hora implacável do bode Inácio, o saco quase a arrastar por terra de tão grande. Sua hora chegara, já não lhe corria sangue entre as coxas todos os meses?

Nas dunas de Mangue Seco, Tieta, pastora de cabras, conheceu o gosto do homem, mistura de mar e suor, de areia e vento. Quando o mascate a arrombou, igual à cabrita horas atrás, ela berrou. 

De dor e de contentamento.


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