ROMANCE
Em toda a beleza da sua nudez de mulher. |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 1
Pastora de
Cabras - Ou A Volta da Filha Pródiga,
Silêncio e
solidão, o rio penetra mar adentro no oceano sem limites sob o céu despejado, o
fim e o começo. Dunas imensas, límpidas montanhas de areia, a menina correndo
igual a uma cabrita para o alto, no rosto a claridade do sol e o zunido do
vento, os pés leves e descalços pondo distância entre ela e o homem forte, na
pujança dos quarenta anos, a persegui-la.
Arfando, o homem sobe, o chapéu na
mão para que não voe e se perca. Os sapatos enterram-se na areia; o reflexo do
sol cega-lhe os olhos; agudo fio de navalha, o vento corta-lhe a pele; o suor
escorre pelo corpo inteiro; o desejo e a raiva - quando te pegar, peste! Te
arrombo e mato.
A menina volta-se e olha, mede a
distância a separá-la do mascate, o medo e o desejo: se ele me pegar vai meter
em mim, estremece apavorada; mas, se eu não esperar, ele desiste, ah!, isso
não, não pode permitir mesmo que queira pois o tempo é chegado.
O homem também parou e fala, grita
palavras que não alcançam a menina, perdidas na areia, levadas pelo vento. Ela
não houve mas advinha e responde:
- Bééé! – Assim cantam as cabras que
ela pastoreia.
O desafio bate na face, penetra nos
ovos do mascate, ergue-lhe as forças, ele avança. Atenta, a menina espera.
Lá atrás o rio, na frente o oceano,
os olhos adolescentes percorrem e dominam a paisagem desmedida. Naquele momento
de espera, de ânsia e de angústia, a menina fixou na memória a deslumbrante da
cama de noiva que lhe coube.
Do outro lado da barra, a beleza da praia larga e
rasa do Saco, em mar de águas mansas, no Estado de Sergipe, a ampla aldeia de
pescadores, com armazém, capela e escola, um vilarejo.
O oposto dos cômoros monumentais onde
ela se encontra, a invadirem as águas, o espaço do mar, contidos pelos
vagalhões na fúria da guerra. Aqui o
vento deposita diária colheita de areia, a mais alva, a mais fina, escolhida a
propósito para formar a praia singular de Mangue Seco, sem comparação com
nenhuma outra, aqui onde a Baía
nasce na convulsa conjunção do rio Real com o oceano.
Dúzia, dúzia e meia de casebres
provisórios, mudando-se ao sabor do vento e da areia a invadi-los e
soterrá-los, morada dos poucos pescadores a habitar desse lado da barra.
Durante o dia, as mulheres pescam no mangue de caranguejos, os homens lançam as
redes ao mar. Por vezes partem em pesca milagrosa, audazes a cruzar os
vagalhões altos como as dunas nos únicos barcos capazes de enfrentá-los e
prosseguir mar afora, ao encontro marcado com navios e escunas, em noites de
breu, para o desembarque do contrabando.
O falso mascate vem na lancha a motor
recolher as caixas de bebidas, de perfumes, os fardos de seda italiana de
casimira e linho ingleses, outras especiarias, e fazer o módico pagamento –
dinheiro para a farinha, o café, o açúcar, a cachaça, o fumo de rolo.
De quando
em quando, trás uma vadia na lancha e enquanto caixas e fardos são
transportados dos casebres, vai despachá-la nas dunas, sobre as palhas dos
coqueiros para aproveitar o tempo. Um garanhão, o mascate; os pescadores o
apreciam. Em mais de uma ocasião ele não os acompanhou nos barcos, indiferente
às vagas até o alto mar de navios e tubarões?
A menina deixa que o homem chegue perto
– só então dispara areia acima e do alto novamente canta o exigente e assustado
chamado das cabras, Bééé! De amor não conhece outra expressão, outra palavra,
outro som.
Ainda naquele dia o ouvira da cabrita
no primeiro cio quando o bode Inácio, pai do rebanho, se encaminhou para ela,
balançando o cavanhaque e as trouxas.
Depois o mascate apareceu e a menina
aceitou o convite para o passeio de lancha, vinte minutos de rio, cinco de mar
agitado e o esplendor de Mangue Seco. Como resistir, dizer obrigado mas não
vou? Mentira: não a seduzira a corrida do rio, a travessia do pedaço de mar,
nem sequer as dunas bem amadas desde a infância.
A menina não tenta
inocentar-se. Recusara convites anteriores, o mascate a tinha de olho há
tempos. Desta vez agora ela disse vamos, sabendo ao que ia.
Quando, porém, sente a mão pesada
segurar-lhe o braço o medo a invade inteira, da cabeça aos pés. Contem-se, no
entanto não busca fugir.
O homem a derruba sobre as folhas dos
coqueiros, suspende-lhe a saia, arranca-lhe a calçola, trapo sujo. De joelhos
sobre ela, enterra o chapéu na areia para que não voe e se perca, abre a
braguilha.
A menina o deixa fazer e quer que ele o faça. Para ela soara o
tempo, como para as cabritas a hora temida e desejada, a hora implacável do bode
Inácio, o saco quase a arrastar por terra de tão grande. Sua hora chegara, já
não lhe corria sangue entre as coxas todos os meses?
Nas dunas de Mangue Seco, Tieta,
pastora de cabras, conheceu o gosto do homem, mistura de mar e suor, de areia e
vento. Quando o mascate a arrombou, igual à cabrita horas atrás, ela berrou.
De
dor e de contentamento.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home