Linda, na sua nudez de mulher |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 30
DE ASCÂNIO TRINDADE, INTEMERATO PATRIOTA E LUTADOR, COM
AS DURAS PENAS QUE EM SINA LHE COUBERAM
Só Ascânio Trindade não perde o fôlego de lutador, nem a esperança de um milagre a salvar Agreste – ama a terra onde nasceu e à qual a doença do pai o fizera regressar abandonado o curso de Direito.
Já não tem obrigação a
cumprir em Agreste, pois seu Leovigildo finalmente morrera após infindáveis
cinco anos, preso à cama sem movimentos, apenas um olho aberto a fitar o vazio.
Ascânio fora enfermeiro, ama-seca, pai e mãe, dando banho naquele corpo
inerte, limpando-o, pondo-lhe o comer na boca, duras tarefas.
Rafa, a escura
mãe de leite, mal podia ajudar, por mais que qui sesse,
velha e reumática, sem forças. Ascânio tomava nos braços o corpo do pai,
levando-o para deitá-lo ao sol sob a goiabeira, no qui ntal,
fazendo-lhe muda companhia horas e horas.
Sempre tranqui lo,
sem uma queixa, nem dos estudos interrompidos, nem da longa provação. O olhar
do pai, um único olho, a acompanhá-lo agradecido, basta ao filho. Esse já
ganhou o reino dos céus, diziam as beatas.
Após o enterro de seu Leovigildo, havia dois anos, Ascânio, se qui sesse, poderia ter-se demitido do cargo de
Secretário da Prefeitura onde o pusera o padrinho, coronel Artur de Tapitanga,
quando o viu sozinho com o pai paralítico e sem tostão.
Demitir-se para quê? Para
voltar à cidade da Baía, recomeçar a faculdade? Maior do que a falta de
recursos, era a falta de vontade. Na capital, Astrud, casada, ria a
inesquecível, cristalina gargalhada – aqui ,
em meu desterro, carregando a cruz do meu calvário, ouço teu riso de cristal e
reencontro forças; nos dias mais penosos a recordação dos teus olhos verdes me
sustenta o ânimo.
Dona Carmosina derrama lágrimas lendo as violadas cartas,
quanto amor!
Noutra coisa não pensou Ascânio no primeiro ano senão no dia do
retorno. Mas quando, abrupt a, Astrud
lhe comunicou o próximo casamento, sem sequer ter desfeito o noivado, ele jurou
não pôr mais os pés na cidade onde habitava a traição.
Sobretudo depois que
Máximo Lima, seu colega de faculdade, advogado, a prosperar na Justiça do
Trabalho, lhe informara haver a inocente, a imaculada Astrud, casado de bucho
inchado, não fosse solto o vestido de noiva e se enxergaria o volume da barriga
de quase quatro meses. Já de menino e escrevendo cartas de amor para Ascânio,
prosseguindo no casto idílio, cândida menina, puta sem rival! Isso lhe doía
mais que tudo; acreditara na pureza, no firme sentimento, deixara-se iludir
como uma criança tola, ingénuo paspalhão.
Ademais, habituara-se à vida de Agreste, no que ela tinha de melhor, o
ar, a água, a paisagem, a convivência dos amigos. Só não aceitara a passividade
do atraso, da pobreza, o marasmo. A cabeça repleta de planos, não se deixa
abater.
Terra tão mísera e largada, Agreste não interessa nem mesmo aos
políticos, raça aliás em
extinção. Entregue a Prefeitura ao doutor Mauritónio Dantas,
cirurgião-dentista de forças reduzidas pelos desgostos e pela esclerose,
trancado em casa a bem da moralidade pública, quem realmente manda e desmanda é
Ascânio.
Há um consenso geral: quando o doutor bater as botas, colocarão
Ascânio no cargo vago, se possível, Prefeito para a vida inteira.
A verdade é que, praticamente sem receita alem da quota federal do
imposto de renda, da escassa ajuda estadual, Ascânio mantém a cidade limpa,
calçou com pedras do rio, ruas e becos, inaugurou duas escolas municipais, uma
na Rocinha, outra em Coqueiro, e busca obter, à custa de ofícios, petições às
autoridades, cartas aos jornais e estações de rádio, que se estendam a Agreste
os fios da Hidroeléctrica.
Ascânio não desanima, porém. Prossegue em sua luta.
Acredita que um dia, fatalmente, a fama do clima, a qualidade da água, a beleza
da paisagem trarão às artérias e praias de Agreste turistas ávidos de paz e
natureza.
Ao ouvi-lo falar há quem sorria do ardente entusiasmo, Agreste não tem
jeito; mas há quem se empolgue e por um momento sonhe com ele, veja realidade
nessa fantasia; como sempre, as opiniões se dividem.
Somam-se unânimes, sem
divergência ao julgar o próprio Ascânio. Não há, em todo o município, cidadão
mais estimado, mais bem visto. As moças casadoiras não tiram os olhos dele.
Ascânio completou vinte e oito anos, o que espera para escolher noiva? Quando
Prefeito não poderá continuar freguês da casa de Zuleika.
Por mais de uma vez, dona Carmosina lhe colocou o problema na Agência
dos Correios. Tanta moça bonita e prendada em Agreste e todas desejosas. Ele
sorri apenas, sorriso triste.
Dona Carmosina não insiste: leu a correspondência
toda, linha por linha, repete de memória trechos da derradeira missiva,
resposta à comunicação do próximo casamento – quem te escreve, Dalila, é um
morto, frígido coração que, da sepultura onde o enterraste, apunhalado, vem te
desejar felicidade; que o remorso não turve tua vida e que Deus me conceda a
graça de esquecer-te, arrancar do peito tua imagem…
Um poeta, Ascânio Trindade,
se escrevesse versos, nada ficaria a dever a Barbosinha. Pelo visto, não
esqueceu, não pensa em noiva.
Sorri apenas um sorriso triste. Outra? Jamais. Nem que um dia
desembarque da marinete de Jairo a mais formosa das donzelas, a mais pura e
sedutora. Coração morto para o amor, minha querida dona Carmosina.
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