sábado, dezembro 19, 2015

Tieta, a viúva alegre...
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)




EPISÓDIO Nº 35














Moreno, alto e forte, a suar saúde e inocência na batina. Se fosse em São Paulo usaria cabelo nos ombros, não tomaria banho, puxaria fumo, perdido maconheiro como os filhos de tantos amigos seus: Antonieta está cansada de ouvir histórias tristes. Sorri para o sobrinho.


- Se o bicho papão quiser me pegar, grito por você. – Está tocada pelas atenções e gentilezas: - Tomaram tanto incómodo por nossa causa.

- Demais. – A voz musical de Leonora, em tom menor, não se eleva nunca: - A gente pode ficar as duas no mesmo quarto.

- Agora já está tudo determinado, é tarde – diz Tieta, por que diz?

A sombra de Lucas, na alcova.

Astério, Ricardo e Peto sem sapatos, conduzem malas e pacotes.

- Cuidado com essa caixa, Peto. É frágil. Aliás o melhor é eu entregar logo.

Antonieta toma o embrulho majestoso, coloca-o sobre a mesa da sala de jantar, em torno à ansiosa curiosidade dos parentes:

- Uma lembrança para tua casa, Perpétua.

Experiente, Astério desfaz os nós do cordão, enrola-o, dobra o papel grosso, ótimos, mesmo sujos serão úteis na loja. Cresce a ansiedade ante o vistoso papel para presente, fita cor-de-rosa, larga, o laço formando uma flor.

- A fita você desata, Perpétua – Astério cede-lhe o lugar.

Contendo o alvoroço, Perpétua toma da ponta da fita, lê a etiqueta: LOJA DO SENHOR JESUS – Objectos Religiosos à vista e a prazo.

Pague a sua devoção em doze meses. Será, por acaso, aquilo com que há tanto tempo sonha, acalentado projecto de compra, encomenda a ser feita na Baía?

Teria havido inspiração divina a comandar a escolha, iluminando o pensamento de Tieta? Deus, por vezes, usa empedernidos pecadores como instrumento para compensar os justos.

Puxa a fita, surge a caixa branca. Retira a tampa, entrega-a a Astério – de que matéria é feita assim tão leve? Isopor, explica Antonieta ao cunhado. Uma exclamação geral de admiração e aplauso.

Do peito em chamas de Perpétua escapa um oh! de gozo profundo ao enxergar, na caixa de isopor, o objecto de seus sonhos, apenas bem maior em tamanho e em boniteza, em virtude certamente.

Quanto maior, mais bonita e cara a imagem, mais santa e milagrosa. Deus inspirara Antonieta: na caixa, alto-relevo em gesso, o Sagrado Coração de Jesus. Nos cabelos, na face, nas mãos, nas vestes, no manto, todas as cores do arco-íris. 

Exposto ao rubro, amantíssimo coração, a chaga aberta. A gota de sangue vermelha, descomunal rubi. Peça digna do altar-mor da Matriz de Aracajú. Ajudada por Astério e Ricardo, com extremo cuidado, Perpétua retira a pesada efígie – nem quadro nem escultura, tendo algo dos dois e sendo coisa nova, jamais vista em Alegre, alto-relevo para ser pendurado em parede.

Nas costas, forte armação de arame; à parte, uma espécie de base de madeira onde pousá-la. Até os pregos vieram, grandes, especiais, de aço cromado, coisa de ver-se. Tieta respira:

- Felizmente chegou inteiro. Para você botar em sala de visitas, Perpétua.

- Ai, que coisa mais divina! Até tenho palpitações. Não sei como agradecer, mana!

Perpétua beija a irmã na face, de leve e de longe. Assim beija os filhos e a mão de Dom José, a do padre Mariano. Ao Major como teria beijado? Se lhe fosse perguntado, Perpétua responderia que os casais unidos em santo matrimónio, abençoados por Deus, têm direito ao convívio carnal. Direito e obrigação. Mas certamente não diria que da lembrança daqueles beijos ela vive.

Peto alisa o isopor:

- Dá a caixa para mim, mãe?

- Está maluco? Largue essa caixa aí. Deixe também o papel e o cordão, Astério. Posso precisar.

- Vou buscar o martelo, mãe? – Ricardo se oferece, segurando a peanha.

Não tem nenhum que se compare nem aqui, nem em Esplanada. O de dona Aida e de seu Modesto, ao lado deste desaparece – vangloria-se Perpétua.

- Irmã como essa é que não há igual no mundo. – Mesmo ao adular Zé Esteves é bravio e virulento.

Para Perpétua não é hora de discutir qualidades e defeitos de Tieta, nem sequer a maneira imprópria como conduz a viuvez. 

O ouro paulista, a comenda papalina, a imagem do Coração de Jesus fazem-na perfeita.

- Tem razão, Pai. Irmã generosa como Tieta não há.

Custa-lhe pronunciar as palavras mas o futuro dos filhos exige sacrifícios, o Major os deixou aos seus cuidados.

Ao voltar, Ricardo não encontra a tia; preparam-se, ela e a moça, para o banho. Os demais encontram-se na sala de visitas. Astério segura a peanha, Perpétua já escolheu o lugar para a divina imagem: entre os retratos coloridos, ela de noiva, o Major de farda – trabalho – trabalho de uma firma do Paraná, encomenda logo feita após o casamento.

Ricardo encosta a escada na parede, empunha o martelo. Não chegou ainda a uma conclusão sobre a santa com a qual a tia se parece. Antes de vê-la, ele a imaginara Senhora Sant’Ana, a padroeira, a avó. Da Senhora Sant’Ana não tem nada. Talvez Santa Rosa de Lima, Santa Rita de Cássia? Elisa estende os pregos ao sobrinho. Aqui, Mãe, está bom?

De cima da escada Ricardo, enxerga a tia saindo da alcova, levando a toalha e a saboneteira, o banheiro fica no quintal. 

Morena, onde a longa cabeleira loura do desembarque? 

Cabelos negros, crespos anéis como os dos anjos na igreja do seminário. Pele trigueira, perna e coxa aparecendo sob o negliché agitado pela brisa, Ricardo desvia os olhos.

Perpétua fita a parede, talvez um pouco acima, aí está bem. Não vê a irmã aproximando-se, a la vontê no robe rendado sobre os seios, vaporoso, preso apenas por um cinto, esvoaçando na brisa da tarde a morrer nas barrancas do rio. 

Não vê ou não quer ver? Tieta olha e aprova, vai ficar bacana. Elisa, babada com o santo e com o penhoar.

- Que amor esse robe!

Perpétua prefere não reparar:

- Vou falar com padre Mariano para vir entronizar no domingo, depois da missa.

Nem Santa Rita de Cássio, nem Santa Rosa de Lima, com que outra então no flos-santório? A caminho do banho, as ancas balouçando, que santa será ela, a tia de São Paulo?

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