Tieta, a viúva alegre... |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 35
Moreno, alto e forte, a suar saúde e inocência na batina. Se fosse
- Se o bicho papão qui ser me pegar,
grito por você. – Está tocada pelas atenções e gentilezas: - Tomaram tanto
incómodo por nossa causa.
- Demais. – A voz musical de Leonora, em tom menor, não se eleva nunca: - A
gente pode ficar as duas no mesmo quarto.
- Agora já está tudo determinado, é tarde – diz Tieta, por que diz?
A sombra de Lucas, na alcova.
Astério, Ricardo e Peto sem sapatos, conduzem malas e pacotes.
- Cuidado com essa caixa, Peto. É frágil. Aliás o melhor é eu entregar logo.
Antonieta toma o embrulho majestoso, coloca-o sobre a mesa da sala de jantar,
em torno à ansiosa curiosidade dos parentes:
- Uma lembrança para tua casa, Perpétua.
Experiente, Astério desfaz os nós do cordão, enrola-o, dobra o papel grosso,
ótimos, mesmo sujos serão úteis na loja. Cresce a ansiedade ante o vistoso
papel para presente, fita cor-de-rosa, larga, o laço formando uma flor.
- A fita você desata, Perpétua – Astério cede-lhe o lugar.
Contendo o alvoroço, Perpétua toma da ponta da fita, lê a etiqueta: LOJA DO
SENHOR JESUS – Objectos Religiosos à vista e a prazo.
Pague a sua devoção em
doze meses. Será, por acaso, aqui lo
com que há tanto tempo sonha, acalentado projecto de compra, encomenda a ser
feita na Baía?
Teria havido inspiração divina a comandar a escolha, iluminando
o pensamento de Tieta? Deus, por vezes, usa empedernidos pecadores como
instrumento para compensar os justos.
Puxa a fita, surge a caixa branca. Retira a tampa, entrega-a a Astério – de que
matéria é feita assim tão leve? Isopor, explica Antonieta ao cunhado. Uma
exclamação geral de admiração e aplauso.
Do peito em chamas de Perpétua escapa
um oh! de gozo profundo ao enxergar, na caixa de isopor, o objecto de seus
sonhos, apenas bem maior em tamanho e em boniteza, em virtude certamente.
Quanto maior, mais bonita e cara a imagem, mais santa e milagrosa. Deus
inspirara Antonieta: na caixa, alto-relevo em gesso, o Sagrado Coração de
Jesus. Nos cabelos, na face, nas mãos, nas vestes, no manto, todas as cores do
arco-íris.
Exposto ao rubro, amantíssimo coração, a chaga aberta. A gota de
sangue vermelha, descomunal rubi. Peça digna do altar-mor da Matriz de Aracajú.
Ajudada por Astério e Ricardo, com extremo cuidado, Perpétua retira a pesada
efígie – nem quadro nem escultura, tendo algo dos dois e sendo coisa nova,
jamais vista em Alegre, alto-relevo para ser pendurado em parede.
Nas costas, forte armação de arame; à parte, uma espécie de base de madeira
onde pousá-la. Até os pregos vieram, grandes, especiais, de aço cromado, coisa
de ver-se. Tieta respira:
- Felizmente chegou inteiro. Para você botar em sala de visitas, Perpétua.
- Ai, que coisa mais divina! Até tenho palpitações. Não sei como agradecer,
mana!
Perpétua beija a irmã na face, de leve e de longe. Assim beija os filhos e a
mão de Dom José, a do padre Mariano. Ao Major como teria beijado? Se lhe fosse
perguntado, Perpétua responderia que os casais unidos em santo matrimónio,
abençoados por Deus, têm direito ao convívio carnal. Direito e obrigação. Mas
certamente não diria que da lembrança daqueles beijos ela vive.
Peto alisa o isopor:
- Dá a caixa para mim, mãe?
- Está maluco? Largue essa caixa aí. Deixe também o papel e o cordão, Astério.
Posso precisar.
- Vou buscar o martelo, mãe? – Ricardo se oferece, segurando a peanha.
Não tem nenhum que se compare nem aqui ,
nem em Esplanada. O
de dona Aida e de seu Modesto, ao lado deste desaparece – vangloria-se
Perpétua.
- Irmã como essa é que não há igual no mundo. – Mesmo ao adular Zé Esteves é
bravio e virulento.
Para Perpétua não é hora de discutir qualidades e defeitos de Tieta, nem sequer
a maneira imprópria como conduz a viuvez.
O ouro paulista, a comenda papalina,
a imagem do Coração de Jesus fazem-na perfeita.
- Tem razão, Pai. Irmã generosa como Tieta não há.
Custa-lhe pronunciar as palavras mas o futuro dos filhos exige sacrifícios, o
Major os deixou aos seus cuidados.
Ao voltar, Ricardo não encontra a tia; preparam-se, ela e a moça, para o banho.
Os demais encontram-se na sala de visitas. Astério segura a peanha, Perpétua já
escolheu o lugar para a divina imagem: entre os retratos coloridos, ela de
noiva, o Major de farda – trabalho – trabalho de uma firma do Paraná, encomenda
logo feita após o casamento.
Ricardo encosta a escada na parede, empunha o
martelo. Não chegou ainda a uma conclusão sobre a santa com a qual a tia se
parece. Antes de vê-la, ele a imaginara Senhora Sant’Ana, a padroeira, a avó.
Da Senhora Sant’Ana não tem nada. Talvez Santa Rosa de Lima, Santa Rita de
Cássia? Elisa estende os pregos ao sobrinho. Aqui ,
Mãe, está bom?
De cima da escada Ricardo, enxerga a tia saindo da alcova, levando a toalha e a
saboneteira, o banheiro fica no qui ntal.
Morena, onde a longa cabeleira loura do desembarque?
Cabelos negros, crespos
anéis como os dos anjos na igreja do seminário. Pele trigueira, perna e coxa
aparecendo sob o negliché agitado pela brisa, Ricardo desvia os olhos.
Perpétua
fita a parede, talvez um pouco acima, aí está bem. Não vê a irmã
aproximando-se, a la vontê no robe rendado sobre os seios, vaporoso, preso
apenas por um cinto, esvoaçando na brisa da tarde a morrer nas barrancas do
rio.
Não vê ou não quer ver? Tieta olha e aprova, vai ficar bacana. Elisa,
babada com o santo e com o penhoar.
- Que amor esse robe!
Perpétua prefere não reparar:
- Vou falar com padre Mariano para vir entronizar no domingo, depois da missa.
Nem Santa Rita de Cássio, nem Santa Rosa de Lima, com que outra então no
flos-santório? A caminho do banho, as ancas balouçando, que santa será ela, a
tia de São Paulo?
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