(Domingos Amaral)
Episódio Nº 163
Ela já não conseguia disfarçar o pânico e
agarrou-lhe o braço:
- A Rainha quer matar-nos, a mim e às
minhas filhas!
Revelou a descoberta de Dona Teresa, e
Miguel Salomão sentiu o óbvio perigo que elas corriam. A rainha andava zangada,
fosse com Afonso Henriques, fosse com o facto de não ter tido um varão, e até
já gritava ao Trava, a quem sempre tratara com candura.
Não se podia confiar no seu julgamento em
termos de turbulência.
-
Ajudai-me, temos de fugir daqui ! -
pediu Zulmira.
O cónego disse-lhe em voz baixa:
-
As paredes têm ouvidos, acalmai-vos.
Acompanhou Zulmira até aos aposentos dela.
Estava na hora da ceia dos soldados e nenhum as guardava. A fugir, terá de ser
já explicou o pároco.
Então Zulmira chamou Fátima e Zaida e
Miguel Salomão dirigiu-as ao pequeno corredor. Depois, desceram uma escada e o
pároco abriu uma porta que dava para o pátio do castelo.
Já era quase noite e os quatro foram
avançando pelas ruas, até que chegaram a um casão agrícola. O cónego disse:
- Ficai aqui ,
alguém virá buscar-vos à noite. Deixando-as, desapareceu e as três mouras
mantiveram-se caladas, muito apreensivas.
Em voz baixa Zulmira contara o que se
passara, e o quanto temia que Dona Teresa a mandasse matar.
Fátima revelou-se contente:
- Finalmente vamos deixar esta terra
imunda!
Zaida também parecia animada e Zulmira
sentiu que a razão era o impedimento de ler, determinado pela rainha no ano
anterior.
A filha estava proibida de ir à biblioteca
da Sé e um ano sem alimentar o seu espírito tornara-a mais desagradada com o
cativeiro.
- Só tenho medo que os soldados nos
descubram – murmurou.
Não era um receio deslocado. Algum tempo
mais tarde ouviram passar um grupo de cavaleiros comandado por Paio Soares.
Escutaram a sua voz e abraçaram-se as três na escuridão. Porém, nada aconteceu
e eles afastaram-se.
Duas horas depois, a porta principal do
casarão abriu-se e um vulto entrou. Não a vendo chamou por elas, e Zulmira
reconheceu a voz.
- Mem!
– exclamou.
Coreu para ele seguida pelas filhas. O
almocreve explicou que chegara nessa tarde a Coimbra. Viera trazer o mestre da
Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo, além de comerciar com os locais e Miguel
Salomão contara-lhe o que se passava.
- Tendes de fugir daqui
- disse Mem.
Entregou-lhes uns mantos, para que se
cobrissem. Saíram do casão e foram andando pelas ruelas até chegarem junto à
carroça de Mem.
O almocreve mandou-as subir e tapou-as, e
de seguida conduziu o veículo até uma das portas da cidade, onde explicou ao
soldado que ia apenas ao curral.
Já fora da muralha, passou pelo dito sem
parar, e só o fez numa zona mais inóspita, onde ninguém ia e ficava a gafaria
de Coimbra.
- Leprosos? – assustou-se Zulmira.
Mem defendeu ser aquele o único local onde
os soldados não viriam. Desde que se enrolassem bem nas mantas e não tocassem
em nada, não apanhariam a doença.
A gafaria era uma ruína grande e escura e
viam-se vultos, cobertos por trapos cinzentos, encostados às paredes.
Mem descobriu um canto vazio e sentaram-se
os quatro no chão. Em voz baixa explicou às mouras que o mais difícil seria
passar o rio, pois as margens estavam guardadas por soldados.
Algum tempo depois, um leproso entrou no
edifício e como havia ainda espaço livre ao pé deles veio deitar-se ali.
As mouras afastaram-se e encolheram-se
ainda mais, e isso atraiu a atenção do leproso. No escuro não era fácil ver as
caras uns dos outros, mas o homem deve tê-las reconhecido, pois disse:
-
Descansai, os soldados aqui não vêm.
Embora a lepra dos cagots não se pegue facilmente.
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