terça-feira, janeiro 26, 2016

Assim Nasceu Portugal
(Domingos Amaral)

 Episódio Nº 163


















Ela já não conseguia disfarçar o pânico e agarrou-lhe o braço:

- A Rainha quer matar-nos, a mim e às minhas filhas!

Revelou a descoberta de Dona Teresa, e Miguel Salomão sentiu o óbvio perigo que elas corriam. A rainha andava zangada, fosse com Afonso Henriques, fosse com o facto de não ter tido um varão, e até já gritava ao Trava, a quem sempre tratara com candura.

Não se podia confiar no seu julgamento em termos de turbulência.

 - Ajudai-me, temos de fugir daqui! - pediu Zulmira.

O cónego disse-lhe em voz baixa:

 - As paredes têm ouvidos, acalmai-vos.

Acompanhou Zulmira até aos aposentos dela. Estava na hora da ceia dos soldados e nenhum as guardava. A fugir, terá de ser já explicou o pároco.

Então Zulmira chamou Fátima e Zaida e Miguel Salomão dirigiu-as ao pequeno corredor. Depois, desceram uma escada e o pároco abriu uma porta que dava para o pátio do castelo.

Já era quase noite e os quatro foram avançando pelas ruas, até que chegaram a um casão agrícola. O cónego disse:

- Ficai aqui, alguém virá buscar-vos à noite. Deixando-as, desapareceu e as três mouras mantiveram-se caladas, muito apreensivas.

Em voz baixa Zulmira contara o que se passara, e o quanto temia que Dona Teresa a mandasse matar.

Fátima revelou-se contente:

- Finalmente vamos deixar esta terra imunda!

Zaida também parecia animada e Zulmira sentiu que a razão era o impedimento de ler, determinado pela rainha no ano anterior.

A filha estava proibida de ir à biblioteca da Sé e um ano sem alimentar o seu espírito tornara-a mais desagradada com o cativeiro.

- Só tenho medo que os soldados nos descubram – murmurou.

Não era um receio deslocado. Algum tempo mais tarde ouviram passar um grupo de cavaleiros comandado por Paio Soares. Escutaram a sua voz e abraçaram-se as três na escuridão. Porém, nada aconteceu e eles afastaram-se.

Duas horas depois, a porta principal do casarão abriu-se e um vulto entrou. Não a vendo chamou por elas, e Zulmira reconheceu a voz.

 - Mem! – exclamou.

Coreu para ele seguida pelas filhas. O almocreve explicou que chegara nessa tarde a Coimbra. Viera trazer o mestre da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo, além de comerciar com os locais e Miguel Salomão contara-lhe o que se passava.

- Tendes de fugir daqui -  disse Mem.

Entregou-lhes uns mantos, para que se cobrissem. Saíram do casão e foram andando pelas ruelas até chegarem junto à carroça de Mem.

O almocreve mandou-as subir e tapou-as, e de seguida conduziu o veículo até uma das portas da cidade, onde explicou ao soldado que ia apenas ao curral.

Já fora da muralha, passou pelo dito sem parar, e só o fez numa zona mais inóspita, onde ninguém ia e ficava a gafaria de Coimbra.

- Leprosos? – assustou-se Zulmira.

Mem defendeu ser aquele o único local onde os soldados não viriam. Desde que se enrolassem bem nas mantas e não tocassem em nada, não apanhariam a doença.

A gafaria era uma ruína grande e escura e viam-se vultos, cobertos por trapos cinzentos, encostados às paredes.

Mem descobriu um canto vazio e sentaram-se os quatro no chão. Em voz baixa explicou às mouras que o mais difícil seria passar o rio, pois as margens estavam guardadas por soldados.

Algum tempo depois, um leproso entrou no edifício e como havia ainda espaço livre ao pé deles veio deitar-se ali.

As mouras afastaram-se e encolheram-se ainda mais, e isso atraiu a atenção do leproso. No escuro não era fácil ver as caras uns dos outros, mas o homem deve tê-las reconhecido, pois disse:

 - Descansai, os soldados aqui não vêm. Embora a lepra dos cagots  não se pegue facilmente.

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