Durma com ele, passei, namore, goze a vida... |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO
Nº 95
Tieta abandona os cremes de limpeza e o espelho, toma das
mãos da moça, acaricia-lhe a crina loura, nem às irmãs queria tanto quanto
àquela desditosa recolhida no trotoar, a pequena Nora, marcada pela má sorte e
todavia capaz de sonho e esperança.
- Eu sei que nunca vai contar, conheço minhas cabritas, ai de mim se
não as conhecesse. O que tu deve fazer? Aproveitar as férias, divertir-se.
Namore o rapaz, ele é simpático e bonitão, um pedaço de homem. Um pouco ingénuo
para o meu gosto mas direito. Durma com ele se tiver vontade. Tu deve estar
morta de vontade, não é?
Leonora abana a cabeça afirmativamente e logo esconde o rosto nas mãos,
Tieta vem sentar-se a seu lado na cama, prossegue:
- Durma com ele, passei, namore, goze a vida mas não se prenda. Tome
cuidado para evitar escândalo. Só não entendo por que você ainda não dormiu com
ele.
Ele pensa que sou virgem Mãezinha. Nunca vi ninguém tão crédulo e
respeitador. Não tenho palavras nem coragem para contar que não sou donzela.
Tenho medo que ele se desiluda, não queira mais me ver.
- É capaz. Agreste não é São Paulo, é o cu do mundo, parou no século
passado. Aqui , ou bem se é moça
cabeçuda ou rapariga de porta aberta. Não viu o que se passou comigo?
Pai me mandou embora, me mandou ser puta longe daqui .
Faz muito tempo mas continua sendo a mesma coisa hoje. Quem sabe, com jeito…
- Que jeito Mãezinha? Ele pensa que sou donzela, que sou rica, filha e
herdeira do Comendador Filipe. Fica inibido até para me pegar na mão porque ele
é um pobre de Jó e eu sou milionária.
Sabe que ele ainda nem se declarou?
Insinua umas coisas, suspira, parece que vai falar, engole em seco, fica
calado, segura em minha mão, não sai disso. Em Mangue Seco fui eu que
beijou ele. Fora daí, roça os lábios no meu rosto quando se despede e nada
mais.
- Eu vi, estava espiando, é de não acreditar. Coitado do rapaz, deve
estar desperdiçando o ordenado na casa de Zuleika para se desforrar, ou
gastando a mão se lhe faltar dinheiro – sorri para Leonora: Siga meu conselho,
deixe o barco correr, dê tempo ao tempo, vá se divertindo. Pelo menos assim
você não se chateia.
- Me chatear? Mãezinha vou-lhe dizer: esses dias aqui foram os únicos felizes da minha vida. Estou
amando. Pela primeira vez, Mãezinha. Com Pipo e Cid foi outra coisa, nem de
longe se parece. Já lhe contei, se lembra?
Diante da adolescente massacrada no sórdido cortiço, Pipo, com o nome
repetido nos rádios de pilha, a fotografia nos jornais, aparecia como a
personificação dos invencíveis heróis das histórias aos quadradinhos, dos
filmes de aventuras, das séries de televisão.
Ser sua garota causava inveja a
todas as demais chivetas da rua. Quando ele a chutou, sofrera principalmente na
vaidade. Vez por outra podemos dar uma metida, se qui ser,
dissera Pipo, cheio de si. Isso jamais. Não aceitara a humilhação,
pretendendo-se a única, a inspiradora dos golos marcados pelo craque nos
matches de futebol.
Chorara a semana inteira com a gozação da vizinhança mas dele mesmo não
sentia falta.
Quando no inferninho asqueroso onde caçava o michê que lhe garantisse a
comida do dia seguinte, encontrou Cid Raposeira na solidão, na droga, no
abandono, amarfanhado rosto de Cristo, tão necessitado de companhia e ajuda,
vibrara o coração de Leonora, sensível e solidário.
Iniciou-se o trajecto do
interminável desespero, alternando-se os raros dias de carinho e humildade, com
os de loucura e violência desatadas. Menos que companheira e amante, sentira-se
enfermeira, samaritana, irmã a cuidar de alguém ainda mais desgraçado do que
ela. Casal de párias perdidos na metrópole fechada em pedra e em fumaça, sem
condições de alegria e felicidade. Um e outro, o glorioso Pipo e o
contraditório Cid, nada tinham a ver com o renitente sonho de lar e paz, de
carinho, de amor.
- É amor, sabe, Mãezinha? Uma coisa diferente. Tudo o que eu queria era
ficar aqui , com ele, nunca ir
embora.
Comove-se Tieta, pobre Leonora, escorraçada cabrita. Afaga-lhe os
cabelos, belisca-lhe a face:
- Não é que eu seja contra, minha filha, é que não vejo jeito.
No jantar em casa de dona Milú, observando Leonora e Ascânio em idílio,
Tieta já se preocupara. Fosse simples aventura, beijos, apertos, umas quecas na
beira do rio, nos esconsos das rochas, nas areias cálidas de Mangue Seco, bons
lugares para descarregar a natureza, não teria maior importância, bastando
manter a descrição para evitar a língua do povo de Agreste longa e afiada.
Se
caísse na boca do povo, paciência. Nora partiria em breve para nunca mais
voltar, pouco interessava a imagem que dela guardassem aqueles tabacudos.
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