Vou falar com ela, não vai ser fácil. |
Tieta
do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO
Nº104
- Vou falar com ela, não vai ser fácil. Mas você tem toda
a razão, não se pode arriscar. Já pensou? Ai, meu Deus!
- A vida é uma confusão, não dá para se entender. Elisa só pensa em ir
para São Paulo. Leonora agora deu para falar que quer viver em Agreste, não
quer sair daqui , nunca mais.
Um sorriso aparece, clareando o rosto anuviado de dona Carmosina,
aquele era um tema exaltante. Aproximou-se do rio, cresce o rumor da correnteza
sobre as pedras, rolam estrelas do céu, desfazem-se nas sombras.
- É verdade, ela me disse que decidiu não ir mais embora.
Conversamos
muito, Nora e eu, nesses dias que você passou em Mangue Seco. Ela
está gamada, morta de paixão. Coisa mais linda, Tieta.
Dois desiludidos, dois…
– busca na memória a palavra moderna, lida há poucos dias no artigo da revista
… - carentes que se encontram, dão-se as mãos e se completam. Está disposta a
ficar aqui .
- E você pensa que ela vai se acostumar nestes confins? Por ora, está
feliz porque no namoro com Ascânio esquece o que sofreu e ela sofreu como
cabrito desmamado.
Mas, depois?
Eu nasci aqui
e aqui quero terminar meus dias mas
só voltarei de vez quando estiver velha, coroca. Antes, só a passeio. Para quem
chega da cidade grande, acostumar em Agreste não é fácil.
Mesmo quem nunca arredou
os pés daqui se queixa da
pasmaceira, veja Elisa. Se eu imaginasse o que ia acontecer, não teria trazido
Nora. É uma tolona, sentimental, acaba perdendo a cabeça, afeiçoando-se a
Ascânio, vai dar problema.
- Eu sei. – Dona Carmosina suspira, dramática que nem autor de folhetim
em cena de culminante, de novela de rádio em fim de capítulo. – Ela é
milionária e ele é pobre! Mas…
- Não é por isso, Carmô, todos os dias a gente assiste a casamento de
rico com pobre. Você pensa que eu ia me preocupar se o problema fosse esse? Já
estaria cuidando do enxoval.
- Qual é então?
Tieta detém-se na beira do caminho para dar maior ênfase à confidência,
persiste o clima de melodrama, o suspense. Dona Carmosina espera, tensa,
incapaz de esconder a impaciência:
- O quê?
- Você sabe que ela foi noiva de um vigarista que só queria o dinheiro
dela. Botou máscara de engenheiro, fachada não lhe faltava mas era tudo.
Ela,
cega de paixão, querendo financiar uns projectos do tipo, só não largou o
dinheiro porque eu manjei a coisa e manerei.
Foi quando a polícia apareceu
atrás dele e se ficou sabendo da ficha completa do patife. A pobre caiu de
cama, quase morreu. A mim não me surpreenderam as revelações da polícia, não me
engano com as pessoas, bato os olhos num fulano e já sei o que vale, a
qualidade do carácter e o tamanho do cacete…
Dona Carmosina, descontraindo-se, explode numa gargalhada:
- Mulher mais maluca, nem depois de morta vai tomar jeito. Inventa cada
uma: a qualidade do carácter, o tamanho do cacete… Essa é boa! – perdida em
riso, refaz-se aos poucos, volta ao amor de Nora e Ascânio.
– Disso tudo eu já
sabia, você mesma tinha me contado. E é por isso que eu digo: dois feridos que
convalescem, dois carentes – Dona Carmosina aproveita para repetir a palavra
recém-aprendida – que se completam. Se o problema da diferença de fortuna não
atrapalha, então…
- Acontece que ela foi noiva desse tipo uns bons seis meses, Carmô.
Noivado em São Paulo
não é como em Agreste. Lá ,
namorados e noivos têm muita liberdade, saem sozinhos para festas, para boates,
fazem passeios que duram dias e dias… noites e noites… As moças andam com a
pílula na bolsa, junto do batom.
- Estou entendendo…
- Pois é. Esse negócio de noiva casar virgem, já era, como dizem os
cabeludos. Só vigora em Agreste.
O facto dele ser pobre não tem nenhuma importância, Nora não dá a mínima para isso. Nem ela nem eu. Mas você acha que nosso amigo Ascânio…
- uma pausa. . – É por isso que estou preocupada, Carmô.
- Agora, quem fica preocupada, sou eu. Preocupadíssima. Por que a vida
é tão complicada, Tieta?
- Sei lá! E podia ser tudo tão fácil, não é? Porca miséria!, como dizem
meus patrícios, os italianos de São Paulo.
Voltam a andar, dona Carmosina digerindo a incómoda revelação, ai, meu
Deus, o que fazer? Tieta completa antes que alcancem as margens do rio:
- Agora que comprei a casa, mandei arrumar e pintar, instalo os velhos,
deixo dinheiro com Ricardo para acabar de construir o barraco em Mangue Seco , pego
Leonora e vou embora.
_ Você não pode ir embora antes da inauguração de luz, já lhe disse. De
jeito nenhum.
- Tinha pensado em ficar mas não posso. Não é tanto por mim, se bem não
deva me retardar demais, deixei em
São Paulo tudo o que é meu na mão dos outros…
- Na mão de gente de confiança…
- Mesmo assim. Quem engorda o porco é o olho do dono. Eu ficaria para a
festa se não fosse por Nora. Preciso tirar ela daqui
enquanto é tempo. Ela não aguenta outro baque, pode até morrer…
- Não se precipite. Espere uns dias, quando você voltar de Mangue seco
eu lhe direi alguma coisa.
- Sobre? - Ascânio e Leonora…
- A vida pode ser tão fácil, a gente mesmo é que complica tudo.
Atingem a beira do rio, as canoas descansam no ancoradouro.
Um pouco
além, na Bacia de Catarina, os pés de chorão debruçam-se sobre os penedos,
aumentam a escuridão. A brisa traz um leve gemido, vem daquelas bandas.
As
amigas avançam uns passos com pés de lã. Vultos nos esconsos; sussurros, ais,
sob os chorões. A vida pode ser tão fácil, repete Tieta. Sorriem as duas
comadres, a bonita e a feia, a que conhece o gosto e a carente (para usar a
palavra da moda, tão do agrado de dona Carmosina) Tieta anuncia:
- Já escolhi o nome para a minha cabana em Mangue Seco:
- E qual é?
- Curral do Bode Inácio. Era o garanhão do rebanho do Velho, um bode
que mais parecia um jegue de tão grande.
O saco arrastava no chão. Com ele aprendi a querer e a conseguir.
Multiplicam-se os ais de amor na ribanceira. Apressadas as duas amigas
retomam o caminho da casa cheia em cuja sala de visitas o vate Barbozinha, em
encarnação anterior, à frente do povo de Paris, assalta e conqui sta a Bastilha, liberta milhares de patriotas
aprisionados.
Magnífico episódio, com espadas e arcabuzes, fidalgos, tribunos,
a carmanhola e sem perigo de cadeia.
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