(Domingos Amaral)
Episódio Nº 241
Coimbra, Julho de 1129
Miguel Salomão contou-nos que, no pátio os homens falavam de punhais, do passado e do futuro, dentro da cri
Sentadas num banco de
madeira corrido, velavam o corpo da mãe, envolta numa túnica de linho e deitada
de lado com a cara virada para Meca.
As criadas haviam limpo o
sangue, mas ainda se viam ligaduras tingidas de vermelho na zona do pescoço,
tal fora a brutalidade daquela decapitação.
À porta da sala tumular, o
pároco Miguel Salomão rezava pela alma de Zulmira, escutando o que as filhas
diziam.
Abu Zakaria estragou tudo!
Agora o príncipe já não nos deixará ir a Córdova! – protestou Zaida.
Fátima enfureceu-se:
- Tenho a certeza de que vós estais satisfeita
com isso! Sempre a fazer olhinhos aos cristãos! Ao Gonçalo e até ao burro do
príncipe! Não vos chega Mem?
Zaida abanou a cabeça
exasperada.
- Nossa mãe também adorava
Mem!
Fátima bufou, impaciente.
- Esse, ainda compreendo, é
moçárabe! Agora cristãos? Se pudesse cortava-lhes a cabeça a todos! Não
escapava um! E podeis ter a certeza de que o Abu vai voltar, e vai matar essa
gente toda! As ruas de Coimbra vão tingir-se de sangue!
Depois de uma curta pausa, a
irmã mais nova encolheu os ombros.
Não deve ser tão bom
guerreiro como dizeis. Já é a terceira vez que tenta vir buscar-nos e falha
sempre.
Ferida no orgulho que sentia
pelo seu amado, Fátima exclamou:
- É uma cidade inteira
contra ele! Estes porcos reproduzem-se como coelhos, têm imensos soldados!
Zaida voltou a encolher os ombros, indiferente ao ódio da irmã e relembrou:
- Estamos à treze anos cativas e nunca nos
fizeram mal.
Fátima replicou de pronto,
com uma careta enojada:
- Mas vão fazer! E vós em
vez de olhardes como o Corão nos ensina, andais para aí a rir-vos com eles!
Quereis emprenhar de um cristão, como a nossa avó Zaida?
A irmã encolheu de novo os
ombros e perguntou:
- Que mal tinha? Cristo
também é nosso profeta, tal como Moisés ou Abraão.
Irritada, Fátima protestou:
- Onde haveis lido tal
infâmia? Deve ter sido nas bibliotecas cheias de mofo desta Sé! Sei bem o que
diz o Corão, e o que a nossa mãe nos ensinou!
Olhou em volta e continuou:
- Esta guerra dura há séculos, mas o
El-Andaluz é nosso! Se o Califado de Córdova não tivesse terminado, ainda hoje
mandaríamos em terras de Coimbra! Virá o dia em que voltarão a ajoelhar à nossa
frente!
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