(Domingos Amaral)
Episódio Nº 245
Só aos poucos Zulmira
conheceu a história da família dele, as tragédias e as grandezas de um passado
real que acompanhara o magnífico Califado de Córdova, mas, nos primeiros dias o
que a encantou foi o seu maravilhoso dom de contar histórias.
Horas a fio, sentada ao lado
de Hisham, escutava os relatos das suas viagens fabulosas a Meca e a Medina, a
Jerusalém, a Constantinopla, a Veneza, a Roma, Toledo e Alexandria, até a
Marraquexe.
Ele conhecia o Mediterrâneo
como a palma das mãos, e as descrições das gentes daquelas terras, dos seus
costumes, dos diferentes sultões, califas e reis deixavam Zulmira subjugada, ao
ponto de um dia ter declarado:
- Hixam querido, somos as Mil e Uma Noites de pernas
para o ar, eu sou o sultão e vós a Sherazade!
Zulmira encantara-se com a
candura daquele homem, os seus conhecimentos, a sua inteligência, o seu bom
coração. Hixam poderia ter sido um gigante, de quem falariam séculos mais tarde
os livros da biblioteca de Córdova, mas a sua fina compreensão das terríveis
convulsões que agitavam a Península, levou-o a escolher uma existência dedicada
ao saber e às viagens e não à política ou à guerra.
A velha criada contou que,
apesar da diferença de idades, Zulmira tinha vinte e poucos anos, os dois
decidiram casar e deixaram Lisboa nesse ano, rumando todos a Córdova.
Dois invernos mais tarde
nascera Fátima e três anos depois Zaida, herdando o nome da avó materna.
- Não sei se foi boa ideia –
murmurou a velha criada.
A avó Zaida tinha um
carácter volúvel, tal como seu pai, o rei Al-Mutamid. O homem com quem se
casara, Ismail, havia de sofrer um grande desgosto, pois um dia encontrou-a a
folgar com um núbio negro.
Ismail não mais se recompôs
e, ressentido, enviou Zaida a Toledo, onde ela apenas confirmaria as suas
inclinações, apaixonando-se por Afonso VI logo que se soube viúva.
- Espero que a neta não lhe
siga os passos – resmungou a velha criada.
Depois da fuga apressada de
Toledo, e dos anos vividos em Lisboa, Zulmira fora feliz no castelo de Hisn Abi
Cherif, de arenito vermelho, perdido nos contrafortes da serra Morena.
Haviam ali recebido poetas e
filósofos, militares e imãs, governadores de Córdova ou de Sevilha, pintores e
historiadores, juristas e músicos. A vida fora doce e amável e, durante aqueles
gloriosos tempos, Zulmira esquecera a sua atribulada existência anterior a
Hixam.
Mas aquela felicidade durara
pouco tempo. Certa noite, quando Hixam regressava de um passeio a cavalo, ao
entrar no castelo, uma mulher atiçara as labaredas da fogueira que sempre ardia
no pátio, o animal empinou-se assustado, e atirou Hixam ao chão.
- Morreu ali, com o pescoço
partido – recordou a criada.
Tinha mais de sessenta anos,
e apesar de bem mais nova do que ele, Zulmira amara-o como nunca amara ninguém
e estava certa que nunca mais amaria.
Hixam foi enterrado no
mausoléu, ao lado do seu pai. Taxfin, que nessa época era o governador de
Córdova, viera ao funeral. Um ano depois, deslumbrado com Zulmira, começara a
fazer-lhe a corte, e ela cedera aos seus encantos.
A criada suspirou, saudosa,
e o almocreve contou que o mesmo assassin
que matara Taxfin e Zulmira
lhe degolara também o pai, em Coimbra.
Os olhos de Mem estavam
húmidos de lágrimas, e a criada fez-lhe uma festa nas mãos e contou o que se
passara no castelo.
O assassin veio aqui e matou a outra criada. Só escapei porque me
escondi dentro de um armário.
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