quarta-feira, abril 20, 2016

Assim Nasceu Portugal
(Domingos Amaral)

Episódio Nº 245



















Só aos poucos Zulmira conheceu a história da família dele, as tragédias e as grandezas de um passado real que acompanhara o magnífico Califado de Córdova, mas, nos primeiros dias o que a encantou foi o seu maravilhoso dom de contar histórias.

Horas a fio, sentada ao lado de Hisham, escutava os relatos das suas viagens fabulosas a Meca e a Medina, a Jerusalém, a Constantinopla, a Veneza, a Roma, Toledo e Alexandria, até a Marraquexe.

Ele conhecia o Mediterrâneo como a palma das mãos, e as descrições das gentes daquelas terras, dos seus costumes, dos diferentes sultões, califas e reis deixavam Zulmira subjugada, ao ponto de um dia ter declarado:

 - Hixam querido, somos as Mil e Uma Noites de pernas para o ar, eu sou o sultão e vós a Sherazade!

Zulmira encantara-se com a candura daquele homem, os seus conhecimentos, a sua inteligência, o seu bom coração. Hixam poderia ter sido um gigante, de quem falariam séculos mais tarde os livros da biblioteca de Córdova, mas a sua fina compreensão das terríveis convulsões que agitavam a Península, levou-o a escolher uma existência dedicada ao saber e às viagens e não à política ou à guerra.

A velha criada contou que, apesar da diferença de idades, Zulmira tinha vinte e poucos anos, os dois decidiram casar e deixaram Lisboa nesse ano, rumando todos a Córdova.

Dois invernos mais tarde nascera Fátima e três anos depois Zaida, herdando o nome da avó materna.

- Não sei se foi boa ideia – murmurou a velha criada.

A avó Zaida tinha um carácter volúvel, tal como seu pai, o rei Al-Mutamid. O homem com quem se casara, Ismail, havia de sofrer um grande desgosto, pois um dia encontrou-a a folgar com um núbio negro.

Ismail não mais se recompôs e, ressentido, enviou Zaida a Toledo, onde ela apenas confirmaria as suas inclinações, apaixonando-se por Afonso VI logo que se soube viúva.

- Espero que a neta não lhe siga os passos – resmungou a velha criada.

Depois da fuga apressada de Toledo, e dos anos vividos em Lisboa, Zulmira fora feliz no castelo de Hisn Abi Cherif, de arenito vermelho, perdido nos contrafortes da serra Morena.

Haviam ali recebido poetas e filósofos, militares e imãs, governadores de Córdova ou de Sevilha, pintores e historiadores, juristas e músicos. A vida fora doce e amável e, durante aqueles gloriosos tempos, Zulmira esquecera a sua atribulada existência anterior a Hixam.

Mas aquela felicidade durara pouco tempo. Certa noite, quando Hixam regressava de um passeio a cavalo, ao entrar no castelo, uma mulher atiçara as labaredas da fogueira que sempre ardia no pátio, o animal empinou-se assustado, e atirou Hixam ao chão.

- Morreu ali, com o pescoço partido – recordou a criada.

Tinha mais de sessenta anos, e apesar de bem mais nova do que ele, Zulmira amara-o como nunca amara ninguém e estava certa que nunca mais amaria.

Hixam foi enterrado no mausoléu, ao lado do seu pai. Taxfin, que nessa época era o governador de Córdova, viera ao funeral. Um ano depois, deslumbrado com Zulmira, começara a fazer-lhe a corte, e ela cedera aos seus encantos.

A criada suspirou, saudosa, e o almocreve contou que o mesmo assassin
que matara Taxfin e Zulmira lhe degolara também o pai, em Coimbra.

Os olhos de Mem estavam húmidos de lágrimas, e a criada fez-lhe uma festa nas mãos e contou o que se passara no castelo.

O assassin veio aqui e matou a outra criada. Só escapei porque me escondi dentro de um armário.

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