Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 143
DE COMO O VATE DE MATOS BARBOSA COMPÔE E DECLAMA UM POEMA QUE NÃO É OUVIDO EM RAZÃO DO EXAGERADO SUCESSO DA FESTA ONDE FORAM DISTRIBUIDOS OS BRINDES DA BRASTÂNIO ÀS CRIANÇAS POBRES, CAPÌTULO POR ISSO MESMO AGITADO E CONFUSO, COM DONA EDNA EM PLENA ACÇÃO
A verdade deve ser dita e proclamada: a distribuição dos brinquedos superou todas as previsões; mais do que animado reboliço de moças e senhoras, de crianças felizes, foi um deus-nos-acuda, um pandemónio, desbordando de todos os limites da ordem e da boa educação.
Em Agreste, terra falta de recursos e de distracções, qualquer cerimónia, de missa a enterro, congrega o povo ávido de entretenimento. A notícia da chegada dos brindes na máquina voadora, conduzidos por Papai Noel em pessoa, correu mundo. Assim, na manhã da véspera de Natal, a carantonha e a fama de valentia de Leôncio não conseguem conter a massa infanto-juvenil, comandada por adultos, na maioria de sexo feminino, reunida à frente da Prefeitura, cuja porta de entrada ele mantém fechada à chave.
Nem mesmo Ascânio Trindade, conhecedor por ofício e devotamento, dos problemas e realidades do município, jamais imaginaram existissem tantas crianças em Agreste.
Ao que se vê todas paupérrimas, pois até os filhos de Agostinho Pão Dormido, dono da padaria, apatacado cidadão, candidataram-se aos regalos da Brastânio: um menino e uma menina, gordos, bem alimentados, nos trinques. Encontram-se entre os primeiros da fila mandada organizar por Ascânio, ali deixados pela mãe, dona Dulcineia Broa Azeda. Fila interminável a fazer-se e a desfazer-se, não para de chegar gente. A molecada corre, grita, levanta poeira, rola no chão, uma bagunça generalizada.
- Que esporro medonho! – comprova Aminthas, espiando da porta do bar, o taco na mão – Não vai ajudar Osnar? Ascânio pediu…
- Desatino só cometo por causa de mulher. Vá você, se quiser – Osnar passa giz no taco, admirando-se da inesperada presença de Peto que chega e se acomoda numa cadeira, disposto a acompanhar a partida de bilhar – Por aqui, Sargento Peto? Pensei que você fosse o número um da fila…
- Para ganhar aqueles bagulhos? Eu, hei? Fico na minha, pô! – Tendo feito tão longo discurso, estendeu os gambitos, chamou seu Manuel, ordenou uma coca-cola na conta de Osnar.
Na sala da Prefeitura, desfalcada da insubstituível dona Carmosina, presa ao leito com um resfriado fortíssimo, febre, dor de cabeça, tosse e catarro, a numerosa e galharda comissão de honra coloca-se sob o comando de dona Milú e entrega-se afobada à tarefa de dividir o conteúdo das sacolas para atender ao maior número de crianças.
Alguns rapazes ajudam, vieram acompanhar namoradas, entre eles o filho de seu Edmundo Ribeiro, coletor, o jovem Leléu de quem já se teve notícia anterior e venérea. Universitário, segundanista de Economia, magricela, prafrentex, cabeludo, no rigor da moda, calça Lee, desbotada, camisa aberta, as fraldas fora das calças, as mangas arregaçadas, a barba por fazer, é o ai-jesus das moças, não chega para as encomendas. Seixas também está presente, combóia um batalhão de primas.
- Nem assim vai dar… - declara Elisa, voltando da janela de onde fez um balanço da situação, calculando o número de crianças.
Elisa e Leonora elegantíssimas, são as duas estrelas da comissão, formosuras que se completam e se opõem, a loira paulista, filha de imigrantes italianos, a morena sertaneja, brasileira de muitas gerações e muitos sangues misturados. Os olhos ladinos de Leléu pousam numa e noutra, a compará-las.
Ambas lhe apetecem, mas têm dono: uma é esposa séria de comerciante ainda moço, a outra namora o secretário da Prefeitura, uma lástima. Ao desviar o olhar encontra o de dona Edna a fitá-lo, dolente, derramado em sombra e insistência. Leléu responde ao sorriso, dona Edna se aproxima, seguida de Terto, que não parece ser seu marido mas com ela casou no juiz e no padre.
Entra na sala padre Mariano, veio benzer os brindes. Vavá Muriçoca, sacristão idoso e ranheta, carrega o repositório de água benta e o aspersório, enquanto Ricardo, de sobrepeliz branca debruada de vermelho, conduz o turíbulo e o incenso. Dona Edna vacila. Primeiro a devoção, depois a diversão. Dirige-se ao padre, beija-lhe a mão, devora Ricardo com os olhos. Ai que o amoreco não afasta a vista, como antes! Pela primeira vez enfrenta o Cupido olhar e mira o rosto da oferecida, sorrindo levemente ao dizer bom dia, dona Edna. Anjo sem mácula mas homem feito. Bom dia, meu coroinha. Ai, quem lhe dera as primícias!
Tendo cumprido a devoção, dona Edna ruma para Leléu que busca conquistar as graças do marido Terto. Tolo, não há necessidade de amaciar-lhe os cornos.
Ante a declaração de Elisa, logo confirmada por Seixas, dona Milú, após breve conferência com Ascânio, ordena sejam todos os brinquedos retirados das sacolas, acumulados atrás da mesa da presidência do Conselho Municipal, em cujos lados são dispostas as cadeiras de espaldar dos vereadores, formando uma espécie de barricada a defender os brindes e as senhoras e moças encarregadas da distribuição. Cada criança receberá um presente.
- Nada de protecção! – recomenda Ascânio Trindade, meio a sério, meio em brincadeira.
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