(Domingos Amaral)
Episódio Nº 87
O trono será delas. Ou dos seus maridos – acrescentou a velha de negro, misteriosamente.
Mem reflectiu em silêncio. Fátima nutria uma duradoira paixão por Abu Zahkaria, mas o cordovês não era um candidato credível a futuro emir de Córdova, muito menos a califa.
Restavam Ismar e Zaida, um casal bem mais apropriado a tais ambições. De repente, o almocreve sentiu-se uma pequena alma perdida naquele universo de poderosos.
Homem sem posses, restam-lhe as tosses.
Forçou o espírito a afastar-se desse pensamento e disse:
- Uma jornada longa começa com o primeiro passo. Temos que encontrar a relíqui a antes que os outros o façam.
Contou a Sohba que uma companhia de galegos fora dizimada perto do Nabão por Zhakaria. Dizia-se que Fernão Peres de Trava também procurava o tesouro para o oferecer ao rei de Leão, Afonso VII.
Se o nobre galego chegasse à relíqui a primeiro, o plano deles ruía.
Senão podeis vir já dizei-me onde está escondida – sugeriu Mem.
Sohba olhou-o, mas abanou a cabeça, não o faria.
Nesse caso, voltarei para Coimbra e falarei com Ermígio Moniz para preparar a troca na primavera – prometeu o almocreve.
De repente, e em simultâneo, Sohba e a soldadeira perguntaram:
- Quem?
Mem descreveu-lhes meu tio Ermígio, notando uma estranha agitação em ambas, mas as duas negaram conhecê-lo. Contudo, aquela referência ao meu tio precipitou decisões e Sohba exigiu apenas a Mem sigilo absoluto sobre o seu refúgio lisboeta.
- Nem as minhas sobrinhas o podem conhecer. Selada essa combinação, Mem partiu. Pouco depois, e ardendo em curiosidade, Sohba perguntou à soldadeira porque se alterara ao ouvir falar em Ermígio Moniz , mas a magra rapariga deitou-se na sua esteira e fechou-se num silêncio teimoso, que só quebrou às primeiras horas do dia seguinte.
Ermígio Moniz é meu pai – disse a soldadeira numa voz monocórdica e seca, como se estivesse a dizer que estava a chover.
A velha mulher empalideceu, agitada por um turbilhão de emoções.
- Raimunda, como é isso possível? Dizei-me a verdade!
- Sim, aquela soldadeira era a minha prima Raimunda, filha bastarda de meu tio que todos julgávamos ter morrido! Como por milagre reaparecera viva e estava agora ao lado de Sohba!
Crescida no seio da família Moniz de Ribadouro, a minha prima idolatrava Afonso Henriques desde menina. Aos catorze anos, dera-se a ele pela primeira vez. A partir daí e às escondidas, entrava no quarto do príncipe e enfiava-se na cama dele, primeiro cobrindo-o só de beijos na boca, mas depois avançando para outros mimos.
Fui a sua primeira mulher, amava-o com loucura e ofereci-me toda mas nem isso chegou – contou à espantada Sohba.
Quando Raimunda tinha dezasseis anos, em Viseu aparecera Chamoa, por quem Afonso Henriques se enamorara loucamente, esquecendo a minha prima. Esta ainda se alegrara quando a galega fora obrigada a casar com Paio Soares, e uma segunda vez quando Chamoa se encerrara num mosteiro, mas rapidamente se desiludira.
O príncipe trocou-me por uma normanda pernilonga, loira e de tetas grandes, chamada Elvira Gualter.
Sohba mantinha-se silenciosa, enquanto se abriam as comportas profundas da alma torturada de Raimunda que, cheia de amargura se lançara de uma ponte, perto de Toledo.
- Nem matar-me consegui.
Sentira-se a afogar numa noite escura, envolta pelas águas do Tejo, mas talvez São Pedro a tenha recusado às portas do céu, pois desmaiara e acordara bem longe, numa das margens do rio.
- Passei a odiar o mundo inteiro, sobretudo Afonso Henriques.
Aquele violento sentimento mantivera-a viva. Dias depois, cruzara-se com o curandeiro e com ele descera o Tejo. Tinha a cara pejada de cicatrizes, provavelmente batera em pedras do rio, o seu corpo e a sua alma estavam uma lástima. Fora o amável indivíduo que a convencera a tratar-se, trazendo-a para Lisboa.
- O resto vós sabeis – concluiu Raimunda.
A minha prima decidira que vender o corpo seria o caminho mais rápido e mais torto para a sua perdição. Deixou-se ser tomada, para lavar com os líqui dos de outros machos o desprezo que Afonso Henriques lhe despertava.
Mil homens fodi para o esquecer, mas nem isso consegui.
Depois de uma curta pausa acrescentou:
- Chegou a hora da vingança!
Aterrada com a determinação maligna que via nos olhos brilhantes daquela rapariga, Sohba obrigou-a a prometer que não iria sabotar o resgate das princesas. Raimunda ainda resistiu, mas depois lá cedeu.
Ficaram as duas caladas, cada uma absorvendo as novidades à sua maneira. Porém, Sobha não conseguiu conter a curiosidade e perguntou à magra soldadeira se havia conhecido a mãe.
- Não – respondeu Raimunda, acrescentando com desprezo – Mas devia ser moura, para o meu pai nunca falar dela.
Então, Sohba recordou-lhe o quanto a estimara e lhe devia a vida, acrescentando uma frase enigmática:
- O destino juntou-nos por alguma razão.
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