segunda-feira, setembro 12, 2016

O Cancro
Para além de ruim é estúpido....

(David Sloan Wilson – Prof. de Biologia e Antropologia na Universidade de Binghamton)















Para compreender o cancro, temos de pensar num organismo único com uma vasta população de células, todas com o mesmo conjunto de genes, excepto no que diz respeito às mutações que estão prestes a tornarem-se as protagonistas da nossa história.

A vida de qualquer célula particular é regulada desde o berço até à sepultura de modo a garantir que desempenha o papel adequado.

Os genes que realizam este milagre de coordenação são designados por nomes como “carataker” (zelador), “gatekeeper” (porteiro) e “landscaper” (vigilante da paisagem), como se o corpo fosse um domínio rural inflês meticulosamente gerido.

Até a morte é regulada por um processo chamado “apoptose”, que desagrega as células de um modo ordenado quando elas já não são necessárias ou já não conseguem desempenhar o seu papel de acordo com as regras, tudo fazendo lembrar um estado totalitário.

A divisão celular é, então, excepcionalmente bem supervisionada.

É feita uma nova cópia de ADN, como se um monge copiasse um texto sagrado. A cópia é revista e corrigida com uma tal exactidão que a taxa de erro final pode ser inferior a um em um milhão para qualquer letra do texto.

Mesmo assim, o texto na sua totalidade contém milhões de letras, pelo que muitas das cópias contém erros e, assim, as mutações (erros de cópia) ocorrem com a regularidade de um relógio em cada divisão celular.

Muitas mutações não têm efeito no funcionamento da célula e a maioria das que o têm são rapidamente detectadas e destruídas pelo sistema imunitário, que actua como uma força policial de uma eficácia implacável.

Batem à porta a meio da noite e levam os “desgraçados” dos mutantes.

Todavia, uma pequena fracção consegue escapar à polícia.

Estes podem parecer inimigos do estado ou heróicos combatentes pela liberdade, resistentes à tirania de estado, consoante a perspectiva pela qual se olhe.

Porém, uma maneira ainda melhor de pensar neles é como organismos-presas a evoluírem para evitar os predadores.

Tal como as aves na floresta apanham os insectos que mais sobressaem, deixando os que se confundem no meio ambiente circundante, também o sistema imunitário retira as células mutantes do corpo que mais se destacam, deixando as que não são detectadas para sobreviverem e crescerem em minúsculas populações.

É provável que, neste momento, haja centenas destas populações no seu corpo.

Assim como as plantas e os animais que vivem em liberdade abandonam zonas actualmente ocupadas para colonizarem novas zonas, a adaptação final que garante o sucesso de um tumor é dispersar-se, enviando propágulos para colonizarem novas zonas do corpo.

Nesta altura, se não antes, o tumor interfere com funções vitais do organismo e a grande experiência evolutiva chega ao fim. A invasão tecidular e as metástases são responsáveis por 90% das mortes por cancro.

A evolução do cancro parece o cúmulo da estreiteza de vistas. Cada “avanço” mutacional que permite a uma linha celular evitar os seus “predadores” (o sistema imunitário), vencer os seus “competidores” (as células que funcionam normalmente) e colonizar outras zonas do corpo (metástases) fá-la aproximar-se mais da sua própria morte.

Mesmo se um tumor permanecer benigno, desaparecerá com a morte natural do organismo, dado não existir nenhum mecanismo que lhe permita passar de um corpo para outro.

A evolução dentro do organismo é incapaz de impedir esta inutilidade. Só a evolução entre organismos pode criar o desfecho de vistas largas de células que colaboram para o bem comum.

Temos sorte por a selecção actuar de forma tão vigorosa a este nível e durante tanto tempo que o cancro é uma doença rara que se manifesta sobretudo numa idade avançada.

Se conseguirmos extinguir-nos como espécie, será devido ao mesmo tipo de estreiteza de vistas que leva as células cancerosas a acelerarem a sua própria morte.

Fim

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