quarta-feira, dezembro 07, 2016

AFONSO HENRIQUES

- Rei Fundador




















Era um homem violento, feito do mesmo pau de todos os guerreiros da Idade-Média, egoísta, sensualão e déspota. Se não fosse assim não teria fundado um reino.

Com o poder dos visigodos em ascensão, eles, que tinham desmantelado o Império Romano e dominado toda a Europa de Leste a Oeste com excepção de uma faixa a norte da Península ibérica dominada pelos Suevos, não era com escrúpulos, problemas de consciência e rijezas de carácter que alguém faria obra de tomo, perdurável.

Mas não tinha cabelos no coração, não era insensível e a palavra justiça para ele não era totalmente destituída de sentido. Isto viu-se na cena trágico-cómica com D. Gonçalo de Sousa:

 - Foi o caso que, sendo hóspede do bom fidalgo, seu apoiante político e leal vassalo, apanhando-o de costas a tratar com os criados das tarefas do comer, virou a mulher, Dª. Sancha Álvares em cima de uma pele de urso e satisfez a sua lascívia.

Entretanto, D. Gonçalo, entrou no salão e surpreendeu-o no acto tendo conseguido ainda articular estas misérrimas vozes:

 - Levantai-vos senhor, que a comida está na mesa…

Enquanto el-rei se banqueteava, foi-se o marido ultrajado à mulher e, tosquiando-lhe os cabelos e ajoujando-lhe às costas uma pele de cabra, com o esfolado para fora, pô-la em cima de um jerico, aparelhado de cilha e albarda e sentada ao contrário no animal.

E foi nesta pose que a mandou para casa do pai dela, não sem antes desse uma volta por onde el-rei se encontrava com os seus cavaleiros.

D. Afonso Henriques ficou em grande cólera e a soprar, jurando-lhe pela vida. Doía-lhe ter abusado da confiança do nobre servidor, mas o desforço dele tivera um repique que muito o confundia e envergonhava aos olhos dos seus.

Hesitante, porém, entre enviá-lo de presente ao diabo ou passar adiante chamou-o à sua presença e disse-lhe:

 - Por muito menos, cegou um adiantado de meu pai a sete condes…

- Cegou-os à traição, senhor, mas disso morreu.

 - E seu te mandar cortar a cabeça…?

 - Senhor, mais vale. Homem borrado, morto é.

D. Afonso Henriques ficou a meditar naquela palavra. Teria, depois de comer bem e beber melhor, filosofado com Herádio que “…se havia de correr a atalhar a ira como se fosse a apagar um incêndio…” e, montando a cavalo, despediu da Quinta do Unhão, vencido o instinto sanguinário.

Que faltou algumas vezes à palavra dada, pelo que os puritanos, ao tempo que os havia, muito o censuravam, muito o censuravam…! Sim, faltou, mas é demasiado rigor com o homem, abalizado na guerra e na conquista, relevar tal pecadilho.

O que ele quebrava com certo desembaraço era a palavra política, a de rei, que não a de homem. Há a sua diferença. Naquelas épocas recuadas, o verbo estava na infância da arte. Não se sabia falar diplomaticamente. O ditado árabe: «Alá deu ao homem a palavra para esconder o seu pensamento» passou primeiro dos filtros da Renascença para os lábios italianos, que o souberam transmitir aos ministros e homens públicos do Universo.

Não havia língua que melhor soubesse prometer, cantar uma fábula que a musicalíssima língua de Petrarca. Todavia era a filha primogénita da latina, que não contava no seu léxico, aliás sóbrio no essencial, o termo sim.

Pois D. Afonso Henriques não ligava grande importância ao prometer e ao faltar frente a frente a outros príncipes, no que provou ter em si o germe do prefeito homem das chancelarias.

Desmentindo-se, e não há que apontar no rol das prendas do primeiro rei faculdade tão lucilante como essa do ludíbrio verbal.

De resto, não está provado que não fosse João Peculiar ou o chanceler Julião que por ele fizessem esse jogo com pau de dois bicos em que os políticos modernos atingiram a subtileza máxima, aprendida nos mistifórios de Aristóteles e no ilusionismo dos prestidigitadores.

Mas se não fosse assim – com papas e bolos se apanham os tolos – era possível que ele, apenas pelo vigor do braço, virasse e amanhasse tão grande geira?

D. Afonso Henriques era religioso, tão maciçamente religioso como o exigia a política de resistência ao muçulmano, que ameaçava subverter o mundo ocidental, e com a Roma pontifícia a cabeça da liga neo-visigótica.

Para ele, e de modo geral, para todo o europeu, a religião tinha-se tornado uma espécie de epitélio da natureza humana.

Fazia assim parte da vida fisiológica dos indivíduos. Todos os actos vinham tocados de determinação eclesiástica. Daí, a estreita e prosaica inteligência que tinha de haver, e de facto havia tanto entre o espírito e Deus, ou entre o homem e o sacerdote, como entre o Príncipe e a Santa Sé.

Por isso mesmo o desrespeito ficava na mesma escala da familiaridade. A cada passo os reinantes infringiam pactos e concordatas celebradas com Roma, e o Papa, a cada passo, erguia o látego excomunicatório e fustigava os relapsos e perjuros.

Mas o Santo Padre tanto excomungava como desexcomungava. Da mesma maneira, os príncipes sabiam que a todo o tempo era hora de comprar o indulto, ou mesmo a salvação a poder de dinheiro.

O braço pontifício levantava-se como batuta e acudiam solícitas as pragas do Egipto, os gafanhotos, as lagartas, os ventos ruins e os ares pestilenciais.

Em Portugal, durante a primeira dinastia não houve monarca que não tivesse os seus problemas com a Cúria.

Roma era susceptível e ciosa das suas prerrogativas. Compreendia-se. Roma fora a mãe chocadeira da pintainhada latina.

Furtarem-se ao cumprimento das obrigações contraídas era negra e intolerável ingratidão.

Mas pagavam-no com língua de palmo, bastava o Sumo Pontífice alçar o breve da maldição.

D. Afonso Henriques sentiu várias vezes sobre si o pesado braço do pescador. Por ventura, as circunstâncias em que o facto se deu, cobertas hoje com o leve verdete do mito, mas sem que por isso tenham perdido a verdade local, constituem o episódio mais pitoresco e porventura shakspereano da sua existência agitada.

Lá porque as vozes de Dª Teresa, entre ferros, chegassem a Roma, ou o que é mais verosímil, os maravadis de oiro, que o infante ficara de contar para a burra de S. Pedro na qualidade de vassalo e obsequioso cristão, deixassem de tilintar a caminho da Cidade Eterna, o facto é que o bispo de Coimbra, de regresso a Portugal, recebeu o encargo de admoestar o rei. Admoestar e, se tanto se impusesse, lançar o interdito sobre o Reino.

D. Afonso Henriques recebeu com ânimo insofrido a reprimenda – que tinha o Santo Padre que meter o nariz onde não era chamado? – e o prelado tratou de cumprir o mandato que trazia, pelo que excomungou toda a terra, abalando para Roma como uma seta.

Sentiu-se muito o rei quando foi informado e, indo-se logo nessa manhã à Sé e mandado tocar para o Capítulo, disse aos cónegos:

 - Dai-me um Bispo…

- Bispo temos, como havemos de vos dar outro - respondeu um menos cobarde.

Extraído da Obra de Aquilino Ribeiro: "Príncipes de Portugal - Suas Grandezas e Misérias".
  

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