Hoje é Domingo
(Na minha cidade de Santarém em 18/12/16)
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Quartel do Lumbala, Alto-Zambeze, Angola, uns anos já depois de 1965... |
O Polícia e o Motorista de Camião
Fevereiro de 2015:
- “ Se eu mandasse vocês seriam todos
exterminados. Não sabem 0 que eu odeio vocês, raça do caralho, pretos de
merda.”
- Terá
dito um agente da polícia da Esquadra de Alfragide na Cova da Moura, em Lisboa.
Ano de 1963:
- Destacamento militar do Lumbala, distrito do Cazombo, perto da
fronteira com a Zâmbia.
- “Meu Alferes, está ali um motorista de camião que pede para
lhe vendermos pão.”
- “Diz-lhe que aqui não se vende pão, isto é um quartel e
não uma padaria. Põe mais um prato na mesa e convida-o para almoçar comigo.”
A mesa estava colocada cá fora, em frente da porta do meu quarto
num edifício rectangular coberto de placas de zinco, um dos que se vêm na fotografia, o único nessa altura. Mais tarde a guarnição militar aumentou e em vez de um já se vêm três.
Eu comandei a segunda guarnição que ali se instalou, de fins de 1963, até Março de 1965 quando terminamos a Comissão e regressámos à "metrópole".
Terão sido os 15 meses mais felizes da minha vida, nas chamadas "terras do fim do mundo" do Leste de Angola daquele continente incomparável que é África, terra maldita por tantas razões que nada têm a ver com ele...
A anterior guarnição construiu-o, a minha melhorou-o substancialmente dotando-o com casa de banho e chuveiros, apesar do Zambeze passar ali a dois passos e ter sido, nos primeiros tempos, enquanto não encheu na época das chuvas, o local ideal dos nossos banhos colectivos, uma espécie de recreio dentro de água.
Terão sido os 15 meses mais felizes da minha vida, nas chamadas "terras do fim do mundo" do Leste de Angola daquele continente incomparável que é África, terra maldita por tantas razões que nada têm a ver com ele...
A anterior guarnição construiu-o, a minha melhorou-o substancialmente dotando-o com casa de banho e chuveiros, apesar do Zambeze passar ali a dois passos e ter sido, nos primeiros tempos, enquanto não encheu na época das chuvas, o local ideal dos nossos banhos colectivos, uma espécie de recreio dentro de água.
No espaço do quartel as crianças luenas, rapazinhos,
movimentavam-se à vontade, sentiam-se bem junto dos soldados a quem, muitos
deles, prestavam serviços de lavagem da roupa.
Comiam connosco do rancho, frequentavam uma escola improvisada
por um Cabo, que fazia de professor, e que eles levavam muito a sério, numa prova provada do que é natureza do português.
Em certo momento do almoço, o camionista, homem de meia-idade,
calejado das estradas infindáveis de terra batida, mãos enormes, virou-se na
cadeira, apontou uma hipotética metralhadora ás crianças e disse, olhar frio: - “matava-as a todas.”
Levantei-me da mesa, virei-lhe as costas e nunca mais o vi...
O coração de certos homens está cheio de ódio: o do polícia da Esquadra da Cova da Moura, de um bairro social problemático de Lisboa e o camionista das estradas do fim-do-mundo do Leste de Angola.
Um ódio que é real e radica num passado longínquo de tribos
inimigas, rivais, em que era preciso odiar para lutar e sobreviver.
À minha volta, naquele quartel improvisado, militares do exército a que eu pertencia, meus concidadãos, tal como eu, conviviam com aquelas crianças,
alimentavam-nas, ensinavam-nas a ler e defendê-las-iam se as suas vidas
estivessem em perigo.
O
motorista do camião não estava imbuído desse espírito. Para ele, o preto era um fantasma que alimentava os seus complexos de pessoa frustrada e desiludida consigo própria.
Na Esquadra da Cova da Moura, bairro problemático, a voz daquele
polícia era isolada. De certeza não era aquele o sentimento da generalidade dos
seus colegas e não podemos tomar a nuvem por Juno.
Estas manifestações racistas são "escapes" de refúgio para insucessos de natureza pessoal combinada com o medo do outro.
Aquele camionista português das estradas da Angola do tempo do colonialismo que, como outros, foram autênticos heróis agarrados a um volante, sem nenhuma garantia de apoio em caso de avaria ou de despiste, a não ser pôr o bacalhau de molho para uma longa paragem como um dia, um deles, em estilo de desabafo, me disse.
O que sobrava, em alguns casos, era o ódio e o despeito para com uma vida que não estava a correr como eles sonharam... que tinha sido madrasta e acabara por fazer deles escravos de um volante em viagens intermináveis, incómodas, desgastantes e pouco compensadoras.
O que sobrava, em alguns casos, era o ódio e o despeito para com uma vida que não estava a correr como eles sonharam... que tinha sido madrasta e acabara por fazer deles escravos de um volante em viagens intermináveis, incómodas, desgastantes e pouco compensadoras.
Conheci aquelas estradas, fiz muitos qui lómetros
nelas, esburacadas e ensopadas, a apanhar “pontapés nas costas” com tanto solavanco e conheci
também alguns motoristas de camião.
O primeiro deles, tinha eu chegado há pouco ao Norte de Angola,
nem o cheguei a ver. Estava reduzido a um tição, junto aos pedais da camioneta
que tinha sido atacada e queimada com ele lá dentro.
O ódio não escolhe raças nem cor: é um fogo que
se põe a arder cá dentro instigado pela frustração de quem se tinha julgado superior porque era branco, do grupo colonizador, dominante, - mais em Moçambique do que em Angola por influência do apartheid da África do Sul - e ali estava, agora, sentado à minha mesa de almoço, descarregando o seu ódio contra crianças que nada tinham a ver com as suas razões de queixa, mas isentando o patrão que o explorava, sem perceber que era um intruso naquela terra a que não pertencia sequer e que ele, ingénuo, acreditou ser um pedaço dos seu Portugal do Minho a Timor...
Tremendo equívoco lançada por Salazar que pretendia combater os ventos da história, segundo ele dizia, como se esses ventos não fossem o futuro.
Treze anos de guerra inútil e injusta, uma geração marcada por uma experiência dolorosa, partidas e chegadas do Cais da Rocha de Conde de Óbitos, lenços brancos a acenar, saudades, lágrimas derramadas pelos filhos mortos e viúvas inconsoláveis, tudo porque na realidade estávamos entregues a um velho teimoso, que escudado numa polícia política que aterrorizava os cidadãos, protegia os interesses de meia dúzia de famílias ricas, à custa de todos os outros.
Treze anos perdidos em que os portugueses por falta de liberdade e democracia não puderam discutir e decidir do seu futuro.
Tremendo equívoco lançada por Salazar que pretendia combater os ventos da história, segundo ele dizia, como se esses ventos não fossem o futuro.
Treze anos de guerra inútil e injusta, uma geração marcada por uma experiência dolorosa, partidas e chegadas do Cais da Rocha de Conde de Óbitos, lenços brancos a acenar, saudades, lágrimas derramadas pelos filhos mortos e viúvas inconsoláveis, tudo porque na realidade estávamos entregues a um velho teimoso, que escudado numa polícia política que aterrorizava os cidadãos, protegia os interesses de meia dúzia de famílias ricas, à custa de todos os outros.
Treze anos perdidos em que os portugueses por falta de liberdade e democracia não puderam discutir e decidir do seu futuro.
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