Mar me quer
Mia Couto
Episódio Nº 11
Chaminé que construísse em minha casa não seria para sair o
fumo, mas para entrar o céu.
(Dito do avô Celestiano)
Quarto Capítulo
O dia começa sempre de mentira. Porque o
sol só finge nascer. Aquela manhã acordou com vontade de esquentar e eu me decidi
passear pela praia. Foi quando encontrei Luarmina mergulhada numa poça de água.
Estava vestida e as roupas colavam-se no corpo.
Aproximei e perguntei a razão daqueles
banhos. Ela respondeu que queria aquecer as pernas.
- A água está quentinha?
- Não recebo quentura da água.
Quem me aquece são caracóis.
E explicou: havia uns certos caracóis que
lhe lambiam as pernas, pastando nessas gorduras dela. Os bichos desqualificavam
viscosas salivas sobre a vizinha e eu só pensava: mal empregadas as minhas próprias
babas, como devido respeito. E salvo seja.
- Dá licença eu entrar?
- Entrar onde?
- Nessa água onde a senhora está
banhada.
Entrei, fui-me chegando perto da vizinha. Me
entornei na toalha de água e fechei os olhos igual como ela.
Minhas mãos fingiram ser caracóis, lesmas
babadoiras lavrando nas coxas de Luarmina. Para meu espanto, a mulata não me
repeliu. Meus dedos prosseguiram, cumprindo seu dever, pescando entre roupa e
corpo.
Espreitei pela esqui na
dos olhos: a gorda Luarmina estava flutuando, embevecida, parecia um navio
repousando em desenho de criança.
De repente, porém, ela soltou um grito. Emendei
minha malandrice, mãos atrás das costas.
- Santo, Dona, o que foi?
Luarmina apontou qualquer coisa sobre as águas. Eram
peixes mortos boiando.
- Veja Zeca, são peixes sem olhos!
Um arrepio ma atravessou. Aqui lo
era um sinal. Alguém da outra margem do mundo, me estava vigiando. Mania dos
mortos é teimarem em ser humanos.
E ali, entre mim e Luarmina, se vertia a imagem dos
divinos.
A mulata estava mais aterrorizada que eu.
- O que é Zeca?
- É melhor sairmos da água. Venha, eu
lhe ajudo.
Luarmina tremia. Para espantar seu medo falei sem
parar. Os peixes sabe o que são? Como apareceram? Então, sente e sossegue. Isso
assim. Lhe vou contar a versão do meu avô Celestiano.
Na antiguidade não havia bicho dentro do mar. Só na
terra e no ar. Muitos pássaros havia, vogando apenas sobre o continentes. Os
deuses se contentavam de ver-lhes voar sobre as florestas, subir acima das
montanhosas alturas.
Uma vez, um pássaro se atreveu a pairar sobre as águas.
E ele surpreendeu, no reflexo, a beleza do seu próprio voo. Regressou e contou
aos outros:
- Já sei porque nos proíbem de voar
sobre o oceano.
E foram aos milhares, bandos ansiosos de
ver a sua imagem.
Nunca, sobre o mar, se haviam formado tais nuvens:
feitas de plumas, ágeis de suster peso. Foi então que estalou a tempestade,
castigo dos divinos deuses. Os relâmpagos rasgavam as aves, como facas
luminosas.
Milhares de asas tombaram nas ondas e foram ganhando
embalo das correntes, como se continuassem voagens em líqui das
vagas. Assim, da asa nasceu a onda, da pluma nasceu a espuma.
- Da maneira como estou em me apetece
ouvir nenhumas histórias.
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