quarta-feira, fevereiro 08, 2017

Mar me quer
Mia Couto




Episódio Nº 11



Chaminé que construísse em minha casa não seria para sair o fumo, mas para entrar o céu.
                                                                                     (Dito do avô Celestiano)



                  

                  Quarto Capítulo


O dia começa sempre de mentira. Porque o sol só finge nascer. Aquela manhã acordou com vontade de esquentar e eu me decidi passear pela praia. Foi quando encontrei Luarmina mergulhada numa poça de água. Estava vestida e as roupas colavam-se no corpo.

Aproximei e perguntei a razão daqueles banhos. Ela respondeu que queria aquecer as pernas.

- A água está quentinha?

- Não recebo quentura da água. Quem me aquece são caracóis.

E explicou: havia uns certos caracóis que lhe lambiam as pernas, pastando nessas gorduras dela. Os bichos desqualificavam viscosas salivas sobre a vizinha e eu só pensava: mal empregadas as minhas próprias babas, como devido respeito. E salvo seja.

 - Dá licença eu entrar?

- Entrar onde?


- Nessa água onde a senhora está banhada.

Entrei, fui-me chegando perto da vizinha. Me entornei na toalha de água e fechei os olhos igual como ela.

Minhas mãos fingiram ser caracóis, lesmas babadoiras lavrando nas coxas de Luarmina. Para meu espanto, a mulata não me repeliu. Meus dedos prosseguiram, cumprindo seu dever, pescando entre roupa e corpo.

Espreitei pela esquina dos olhos: a gorda Luarmina estava flutuando, embevecida, parecia um navio repousando em desenho de criança.

De repente, porém, ela soltou um grito. Emendei minha malandrice, mãos atrás das costas.

- Santo, Dona, o que foi?

Luarmina apontou qualquer coisa sobre as águas. Eram peixes mortos boiando.

- Veja Zeca, são peixes sem olhos!

Um arrepio ma atravessou. Aquilo era um sinal. Alguém da outra margem do mundo, me estava vigiando. Mania dos mortos é teimarem em ser humanos.

E ali, entre mim e Luarmina, se vertia a imagem dos divinos.  

A mulata estava mais aterrorizada que eu.

- O que é Zeca?

- É melhor sairmos da água. Venha, eu lhe ajudo.

Luarmina tremia. Para espantar seu medo falei sem parar. Os peixes sabe o que são? Como apareceram? Então, sente e sossegue. Isso assim. Lhe vou contar a versão do meu avô Celestiano.

Na antiguidade não havia bicho dentro do mar. Só na terra e no ar. Muitos pássaros havia, vogando apenas sobre o continentes. Os deuses se contentavam de ver-lhes voar sobre as florestas, subir acima das montanhosas alturas.

Uma vez, um pássaro se atreveu a pairar sobre as águas. E ele surpreendeu, no reflexo, a beleza do seu próprio voo. Regressou e contou aos outros:

- Já sei porque nos proíbem de voar sobre o oceano.

E foram aos milhares, bandos ansiosos de ver a sua imagem.

Nunca, sobre o mar, se haviam formado tais nuvens: feitas de plumas, ágeis de suster peso. Foi então que estalou a tempestade, castigo dos divinos deuses. Os relâmpagos rasgavam as aves, como facas luminosas.

Milhares de asas tombaram nas ondas e foram ganhando embalo das correntes, como se continuassem voagens em líquidas vagas. Assim, da asa nasceu a onda, da pluma nasceu a espuma.

- Da maneira como estou em me apetece ouvir nenhumas histórias.


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