Mia Couto
Episódio Nº 10
Todos sabíamos que sim, que ela se irremediara nos fundos, lá onde
os corais florescem em
peixes. Todos sabíamos menos o velho Agualberto,
desguarnecido de noção.
Todas as tardes ele levava para dentro do mar cestos de comida e
rações de água doce.
Mergulhava e se deixava em permanência alongada. Depois,
regressava à superfície, satisfeito de tudo, medidas as contas com a saudade.
Cada vez que vinha à tona, porém, seus olhos se exibiam mais azuis.
Um dia se lavariam de toda a cor, como as conchas que esbranqui çam. Aqui lo
parecia aplicação de um presságio, um mapa de seu pensamento: perder as vistas
como perdera seu amor. E assim aconteceu: Agualberto ficou de olhos deslavados
e nyca mais visitou as profundezas das águas.
Quando o azul lhe saíu dos olhos também meu pai se esboreou de
casa. Foi-se. Eu era menino, acreditava que tudo tinha remédio. A saída de meu
velho foi a primeira crença de que certas coisas, nessa vida, não têm reparo.
No mesmo tempo, tive que atender também o desjuízo de minha mãe.
Ela não se conformou com aquele abandono. Porque já o meu velho se retirara há
muito e ainda ela me dizia:
- Espera Zeca,
primeiro vou pedir as licenças a seu pai!
Houvesse injúria ou lágrima ela sempre me consolava:
- Deixe que vou queixar a seu pai!
Como se a partida dele fosse simples atraso de pescaria. Faz parte
dos mandos, nunca se diz a um menino que ele é órfão. Assim minha mãe vestia
ausência com panos de mentira.
- Esta semana já
escreveu cartinha para ele?
Eu sorria triste mas ela nem me dava tempo.
Seu pai haveria de
ficar contente em ler um papelinho seu. Ele havia de ficar contente a pontos de
lágrima.
- Mas, mãe...
- Sabe, um dia uma
lágrima dele caiu lá no mar. Ali mesmo, naquela onda onde tombou, a lágrima
mudou-se num coral e foi ao fundo. Escreva a seu pai...
- Mas eu mãe... eu nem
sei as letras como são.
Por isso você vai ter
com o padre, frequentar na missão. Seu pai, depois, lhe há-de mandar uns
dinheiros.
- Está bem, mãe.
Depois, ela entrava na casinha, parecia atravessar a fogueira bem
pelo meio das chamas. Fazia lembrar Maria Bailarinha, modos como ela se
antigamentou dançando com o fogo. Mas minha mãe caminhava sobre as fogueiras e
nada lhe acontecia.
Sem vontade do tempo, eu ficava na praia a passear os olhos pela
noite. Minha mãe voltava, tempos depois, e me dizia:
- Vê as estrelas,
Zeca? Sabe o que elas dizem?
- Não mãe.
- Sabe, filho a noite
é uma carta que Deus escreve com letrinhas miuditas. Quando voltar da cidade
você me há-de ler essa carta?
- Sim, mãe.
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