(Mia Couto)
Episódio Nº 17
Eu sabia quanto ela sofria
com a minha perseguição à passarada. Com pena do gaivotame sabem o que ela fez?
Fabricou uma gaiola onde meteu dezenas delas. Aqui lo
era uma azafameira, dia e noite. Não para Luarmina que era mulher de pouco
meximento. Mas para as miudagens que capt uravam
as aves e lhes traziam qui logramas
de peixe para alimentar aquela biqueira toda.
Às noites, meu sono nem
tocava a fundo. Dormiam só partes de mim, não eu todo, completo. Por causa a
barulheira que vinha da gaiola da vizinha. Até que, numa dessas insónias,
penetrei pelo escuro de gasolina, raiva e fósforo.
O fogo é uma paixão, num
segundo tudo se consome. As gaivotas, prisioneiras, pareciam lenços brancos
acenando num poente. Se extinguiam, voando. Até que, não mais restando senão
cinzas, me retirei antes que fosse visto.
No dia seguinte fui visitar
a minha vizinha. Como previa, ela estava na varanda. Minha mão pousou como uma
condolência na curva do seu ombro. Ela nem mexeu. Já tinha chorado tudo, estava
exausta. Apenas uma lágrima teimava na redondura da face. Ainda fiz gesto para
lhe oferecer um lenço. Mas lembrei certas palavras dela, em vez que ela
chorara. Luarmina, nunca me esquecerei, disse assim:
- O senhor pode ter sido acarinhado, por mão, por lábio, por corpo, mas
nenhuma carícia lhe devolve tanto a alma como a lágrima deslizando.
- Como sabe isso, Luarmina?
- A lágrima é o mar acariciando a sua alma. Essa aguinha somos nós
regressando ao primeiro ventre.
Lembrando as palavras dela
emendei o lenço. Deixei a lágrima escorrer-lhe. Ficámos ali, calados. O silêncio
dela estava completamente qui eto,
magoando mais que mil prantos.
Súbito, me deu vontade de
limpar o que havia feito, devolver vida e voo à capoeira. Mas eu nem encontrava
solução: se havia vassoura faltava o chão. Decidi confessar tudo. E lhe contei
sobre Henriqui nha.
Lhe conto Dona – já fui
casado, mais que casado. Era uma moça muito cheia de corpo, mas bem chanfrada
da cabeça, diria mesmo transtorneada.
No início nem dei conta da
sua desviação. Henriqui nha parecia
toda compostinha, sem desfeição seja em corpo seja em espírito.
Aos domingos, em fecho de
tarde, ela safa pelos atalhos rumo à Igreja de Nossa Senhora das Almas. Levava
seu vestido preto, se afastava com passo de viúva. Olhando aquela mulher, da
varanda, me atravessava um arrepio como se aquela marcha desenroscasse os
fechos da minha alma. Depois, contemplando o seu traseiro ceramicando a saia eu
me conciliava comigo mesmo. Uma esposa assim belíssima e devotada a Deus era
uma agradádiva.
Até que um dia me disseram
que, afinais, ela não se dirigia a nenhuma missa. Ia, sim, ao cimo da Duna
Vermelha e se despia aos olhos, posta toda fora de roupas.
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