quarta-feira, fevereiro 22, 2017

Mar me quer
(Mia Couto)



Episódio Nº 17









Eu sabia quanto ela sofria com a minha perseguição à passarada. Com pena do gaivotame sabem o que ela fez? Fabricou uma gaiola onde meteu dezenas delas. Aquilo era uma azafameira, dia e noite. Não para Luarmina que era mulher de pouco meximento. Mas para as miudagens que capturavam as aves e lhes traziam quilogramas de peixe para alimentar aquela biqueira toda.

Às noites, meu sono nem tocava a fundo. Dormiam só partes de mim, não eu todo, completo. Por causa a barulheira que vinha da gaiola da vizinha. Até que, numa dessas insónias, penetrei pelo escuro de gasolina, raiva e fósforo.

O fogo é uma paixão, num segundo tudo se consome. As gaivotas, prisioneiras, pareciam lenços brancos acenando num poente. Se extinguiam, voando. Até que, não mais restando senão cinzas, me retirei antes que fosse visto.

No dia seguinte fui visitar a minha vizinha. Como previa, ela estava na varanda. Minha mão pousou como uma condolência na curva do seu ombro. Ela nem mexeu. Já tinha chorado tudo, estava exausta. Apenas uma lágrima teimava na redondura da face. Ainda fiz gesto para lhe oferecer um lenço. Mas lembrei certas palavras dela, em vez que ela chorara. Luarmina, nunca me esquecerei, disse assim:

- O senhor pode ter sido acarinhado, por mão, por lábio, por corpo, mas nenhuma carícia lhe devolve tanto a alma como a lágrima deslizando.

- Como sabe isso, Luarmina?

- A lágrima é o mar acariciando a sua alma. Essa aguinha somos nós regressando ao primeiro ventre.

Lembrando as palavras dela emendei o lenço. Deixei a lágrima escorrer-lhe. Ficámos ali, calados. O silêncio dela estava completamente quieto, magoando mais que mil prantos.

Súbito, me deu vontade de limpar o que havia feito, devolver vida e voo à capoeira. Mas eu nem encontrava solução: se havia vassoura faltava o chão. Decidi confessar tudo. E lhe contei sobre Henriquinha.

Lhe conto Dona – já fui casado, mais que casado. Era uma moça muito cheia de corpo, mas bem chanfrada da cabeça, diria mesmo transtorneada.

No início nem dei conta da sua desviação. Henriquinha parecia toda compostinha, sem desfeição seja em corpo seja em espírito.

Aos domingos, em fecho de tarde, ela safa pelos atalhos rumo à Igreja de Nossa Senhora das Almas. Levava seu vestido preto, se afastava com passo de viúva. Olhando aquela mulher, da varanda, me atravessava um arrepio como se aquela marcha desenroscasse os fechos da minha alma. Depois, contemplando o seu traseiro ceramicando a saia eu me conciliava comigo mesmo. Uma esposa assim belíssima e devotada a Deus era uma agradádiva.

Até que um dia me disseram que, afinais, ela não se dirigia a nenhuma missa. Ia, sim, ao cimo da Duna Vermelha e se despia aos olhos, posta toda fora de roupas.

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