sábado, março 11, 2017

Mar me quer
(Mia Couto)


Episódio Nº 21











- Quais sítios o senhor quer ir, pai?

- Senta, Zeca. Quero falar.

Agualberto Salvo-Erro. Aquela vez ainda pareceu hesitar. Mas adiantou.se, rápido, em assunto grave:

- Eu estou mais-quase - menos  quase para morrer.

- Não diga isso.

- Eu sei que chegou a hora. Mas não quero morrer num só lugar. Não posso acabar todo inteiro num só lugar. Já tenho os sítios onde irei morrer, um bocadinho em cada um.

Seu pedido era esse: que o guiasse para esses lugares onde ele queria espalhar suas mortes. E partimos, primeiro junto ao embondeiro de Ritsene. Ele se encostou no tronco, cansado. Ficou, deixado a respirar, até falar.

- Seu avô Celestiano tinha razão, filho.

- Dizia era o quê?

O avô condenava Agualberto por ele se entregar aos costumes dos brancos. O motivo de sua desgraceira residia em suas costas viradas contra o mundo mais antigo.

- Esta é a nossa igreja, disse meu pai, apontando a árvore. Ouviu. Zeca?

- Ouvi, pai.

- Diga ao padre Nunes que eu vim aqui, na árvore dos antepassados. Diga que eu vim aqui, não fui lá, ajoelhar na igreja dele...

Tirou da saca um coral preto. Anichou o Konkuene num oco da árvore, era sua dádiva aos antepassados.

- Só eu que tenho esse coral. Sou único que tenho um assim.

E nos afastámos, calcorrendo a margem do rio, meu pai seguia direito a meu lado, parecia dispensar meus olhos. Será que sem redondura nos olhos, ele ainda via?

- Ouço a luz da água, para onde ela vai...

- E vamos nós para onde?

- Agora vamos nessa florestinha onde esse barco nasceu.

Levei-o para o interior de um bosque onde ele carpinteirara as madeiras do seu primeiro e único barco. O velho rodou pela clareira, apalpou cada um dos troncos como se fosse corpo de mulher. E chamou cada uma das árvores por um nome.

- Essa se chama Esperança, essa outra torta se chama Subidora do Sol.

Tropeçou em arbustos, se enredou pelo chão. Ajudei-o a levantar-se. Mas ele preferiu.

- Me deixe um pouco morrer aqui. Me arraste só um nada para esse lado. Sim, aqui está bom. Aqui quase corre um raiozito de sol.

Ficou um tempo de olhos fechados. Voltou a tirar um pedaço de coral e pousou-o no chão. Era outra oferta aos deuses.

- E agora, pai?

- Agora vou para o outro lado do mar...

- Eu vou aprontar o barco e sigo com o senhor.

- Não. Você fica , eu vou sozinho.

Meti-o no barco mais seu velho saco. Fui empurrando até onde havia pé. Apontei-o na direção certa e disse-lhe:

- Siga sempre a direito, não desvie...

- Estou no mar, meu filho, já não preciso de condução.

E se afastou. Foi a única vez que chamou de filho. Era, eu sabia, a despedida. Ouvir da boca dele essa palavra poderia ser uma infância nascendo. Mas era o adeus dela.




Quando sentiu que estava morrendo meu avô Celestiano chamou a mulher e pediu-lhe:

- Deixa-me fitar teus olhos!
E ficou embevecido, como se a sua alma fosse um barco deitado num mar que eram os olhos de sua amada.
- Tens frio? -  perguntou ela vendo-o tremer.
- Não, És tu que estás a chorar.
- Chorar, eu? Começou foi a chover.


PS - Lembrança da minha avó sobre o último instante do velho Celestiano.


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