Mar me quer
(Mia Couto)
Episódio Nº 22
Minha doença piorou: já não me levanto da
cama. Mais grave: não posso dormir sequer. Mal palpebrejo, a dobra do lençol se
converte em água e, no instante seguinte, tudo se avermelha e eu desaguo em
rios de sangue. Se durmo me afogo, se vigio me foge o juízo. Me faz falta o
sonho, tudo quanto queria era sonhar.
Ouço ruído na porta. Devem ser ladrões,
mas já isso não me importa.
- Venho-lhe visitar, Zeca.
- Verdade, sorrio incrédulo.
- Você sempre me visitou.
Hoje sou eu a vir ter consigo.
Luarmina desembrulha um lençol novo. Ordena
que a ajude a mudar a roupa da cama.
- Essas estão ensopadas.
Como é possível transpirar-se tanto?
Eu queria dizer-lhe que aqui lo não era suor, era o próprio mar me castigando.
Mas não entrei em atalho, fui direito ao assunto:
- Ainda bem que veio, Luarmina.É que estou
quase para morrer.
- Não fale disparate, Zeca.
Você ainda me há-de atirar umas pazadas.
Pedi à vizinha o mesmo que o velho
Celestiniano me pedira em seu último momento: que ela ficasse junto ao meu
leito só para eu me distrair nos olhos dela.
- Lhe peço, vizinhinha:
quero desfalecer a olhar os seus olhos
Luarmina sorriu, indulgente, como se eu me
tivesse acriançado de vez.
- Se você continua com essa
conversa, vou-me embora daqui .
- Então me faça um favor,
Dona. Me conte uma história.
- Uma história, eu?
- Sim, eu já lhe contei tantas, vizinha.
- Mas eu não tive história, eu tive
pouca existência.
- Como é possível?
- Minha vida é muito pobre. Eu vivi tão poucochinho
que já tenho pouco para morrer.
- Dona Luarmina, faça um esforço. É uma
vergonha para um homem, mas eu queria me embalasse até chegar a um sonho.
É que preciso sonhar, preciso tanto de
sonhar!
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