sexta-feira, janeiro 09, 2009


Cemitérios –
Espaço de Vivos




O meu sobrinho Rui, aproveitou as férias e foi de visita à nossa aldeia - diferente que ela está! - mas, mesmo assim, a nossa aldeia será sempre a nossa aldeia, a minha e a dele, por ordem cronológica.

Para mim, transporta já uma enorme lista de pessoas que nas minhas mais recuadas memórias lá continuo a encontrar ao dobrar da curva, cada uma no seu passo, nas rotinas próprias da hora de cada dia.

Enxada às costas, tamancos nos pés, calças arregaçadas, o meu tio Firmino lá vai regar a horta, sempre composto, muito educado, bem apresentado, não fosse ele alfaiate:

- “O Sr. Lopes (o meu pai era António Lopes) arruma à esquerda ou à direita?”, perguntava-me ele, meio ajoelhado aos meus pés, metro esticado, a tirar as medidas para as calças.

Eu não teria, então, mais que catorze ou quinze anos e o meu tio Firmino foi a primeira pessoa que me tratou por senhor, o que me deixava um pouco estranho, eu sabia que era apenas um rapaz mas o meu tio Firmino era um perfeito cavalheiro, muito educado.

Afinal, meu querido sobrinho, para mim, toda a nossa aldeia é espaço de vivos, talvez menos o cemitério, aí não consigo recordar-me de ninguém, julgo mesmo que naquele local, quando eu era rapazinho, não havia nenhum cemitério.

Confesso que não gosto dos cemitérios… a única pessoa que lá poderia recordar seria o coveiro, mas não recordo.

Espaço de vivos: a fonte, as ruas, a taberna do Zé Palmeiro, os quintais, a loja da prima Clementina, sede dos Correios e Telefones em frente da qual esperávamos, todos os dias, a camioneta da carreira das 6 horas que parava precisamente em frente da casa, na fotografia, casa esta que então não existia.

Momento importante do dia, local de encontro para vermos quem chegava, curiosidade e coscuvilhice pura, não esquecendo a Bia, a jovem mais bonita e letrada da aldeia, filha do Cabo de Ordens, que estudava Letras na Faculdade em Lisboa e que não nos passava cartão… a nós, miúdos do liceu.

Também ela era presença assídua à camioneta das seis, sempre muito arranjada, os olhos bonitos, lábios pintados rigorosamente de encarnado e aquele ar altivo, superior de quem se sentia a mais linda e letrada e, melhor ainda, sem concorrência.

Desembarques e embarques feitos, correspondência entregue na loja da prima Clementina, e lá seguia a camioneta da carreira até ao seu destino, no Gavião.

A Bia tomava de novo a estrada e regressava a casa com o mesmo passo e elegância com que hoje desfilam nas “passereles”mas sem os exageros de agora, e eu ficava a vê-la, enfeitiçado, até que desaparecesse na curva.

Na verdade, nas minhas recordações de então não entra o cemitério, relacionado com ele apenas os funerais, aquele desfile de pessoas vestidas de preto, com ares muito sérios e contristados que acompanhavam até à sua última morada o defunto, que era sempre uma pessoa já muito velhinha que saía de ao pé da lareira onde estava quentinha para ir para debaixo da terra porque já não havia calor que a conseguisse aquecer.

O meu irmão, o teu pai, mais novo do que eu catorze meses, em termos de espaço, deixou em mim um “buraco”… tão diferentes que nós éramos e que espaço enorme ele ocupava!

Ele tinha tanta vida, tanta energia, que eu só me lembro das almofadas a voarem no quarto naquelas brigas permanentes de garotos com o teu avô a ralhar e nas quais, ele, mais miúdo, ganhava sempre porque eu desmanchava-me a rir.

É verdade, Rui, espaço de vivos a não poder mais, com o teu pai a correr atrás de mim, desesperado porque me queria bater.

Quem tiver filhos de idades próximas deixem-nos brigar quando garotos, serão as melhores recordações quando ficar o “buraco”.

Conheces as minhas ideias e convicções: vivemos em consequência de uma oportunidade rara, única e irrepetível e isso foi um privilégio.

Viemos do mundo dos não vivos, inevitavelmente a ele regressaremos. A nossa vida foi aqui, experiência fantástica, tão fantástica que nos absorvemos com outras coisas, distraímo-nos e acabamos por passar ao lado do que, verdadeiramente, é belo na vida e esse foi um grande desperdício…o maior “pecado”.

Obrigado Rui pela fotografia, o pôr de sol está lindo… o resto imagino eu… agora tenho que fugir, há um miúdo, que viria a ser teu pai, que vem atrás de mim para me bater.

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