Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº16
Além das notícias, perguntas: ela, Antonieta, que fazia? Qual o endereço completo? Mandasse contar tudo, timtim por tintim.
A resposta não tardou sequer um mês. Antonieta enviou um cheque em nome do major, pedindo-lhe o favor de descontá-lo e entregar o dinheiro a Zé Esteves, destinava-se a ajudar o pai e a madrasta nas despesas. O pai podia contar com aquele auxílio mensalmente. O valor do cheque despertou atenção e cobiça: dinheiro grosso, bem mais do que o casal necessitava para pagar o casebre onde habitava, mesmo pondo em dia os alugueis atrasados, para a comida e para a cachaça medida mas indispensável à dieta do Zé Esteves. Perpétua insinuara divisão da ajuda mas um olhar do velho, o bastão erguido em arma de guerra, foi suficiente para encerrar o assunto. Para evitar a ida do Major a Alagoinhas, onde fica a mais próxima agenda do banco, seu Modesto Pires, dono do curtume, fez o favor de descontar o cheque. Esse primeiro e todos os demais.
Quanto às perguntas nem sombra de resposta, resumindo-se Antonieta a informar que graças a Deus gozava de saúde, casara-se e era feliz apesar de não ter filhos. Sobre o marido, nome, profissão, idade, nenhuma palavra. Endereço? Nenhum melhor, mais seguro, do que a Caixa Postal 6211, toda a correspondência para ali dirigida chegaria às suas mãos.
No transcurso de mais de um decénio, as relações epistolares entre Tieta e a família mantiveram-se absolutamente regulares; uma carta por mês de cada lado, a de São Paulo, poucas linhas, papel e envelope de cor, perfumados. Variando a cor de ano para ano, o perfume mudara uma única vez. Mais suave e discreto o último, estrangeiro com certeza.
A quantia do cheque crescendo, não somente por causa da inflação. Quando Elisa teve menino e dona Carmosina acentuara as dificuldades de Astério, Tieta somou à ajuda ao pai certa quantia mensal para o leite do menino e sua futura educação. Fazendo o mesmo quando Perpétua lhe escreveu dramática e, por uma vez na vida, sincera, chorando a morte do marido perfeito, a deixá-la viúva com dois filhos nos braços, necessitada. Boca de siri sobre as casas de aluguer, as economias no banco, mas Tieta já se dera conta da diferença de sorte das irmãs pois mandava para uma e outra importância igual: se Perpétua tinha dois filhos, bem maiores eram as dificuldades de Elisa. Começaram a chegar os pacotes de roupa usada, os presentes de Natal e de aniversário, mas dela e do marido pouco mais soubera.
Muito pouco, quase nada, mas o suficiente para dona Carmosina juntar as peças e desatar o nó.
Há uns nove anos – nove anos e nove meses, exactamente – num número de Carnaval da revista Manchete, dona Carmosina reconheceu, apesar dos cabelos oxigenados, numa fotografia de foliões em plena animação no baile do Teatro Excelsior, na capital paulista. Ali estava ela, bem no centro da foto, feliz, aconchegada e amorosa nos braços de senhor de certa idade, a se acreditar nos cabelos brancos. Infelizmente do cavalheiro via-se apenas as costas, pois dançavam; ela sim, estava de frente, a boca aberta em riso, o rosto franco e brejeiro, uma gentil senhora, não mais a jovem estabanada cuja partida de boleia num caminhão Carmosina testemunhara. Crescera em formosura, opulenta de formas. Jamais fora magricela, sua beleza tinha onde pegar-se.
Dona Carmosina convocou a família inteira, foi uma sensação. Perpétua balouçou a cabeça, concordando. Antonieta, não havia dúvida; engordara e oxigenara os cabelos. Também o velho Zé Esteves reconheceu a filha:
- Tá pimpona, de cabelo pintado, na moda. Deus te acrescente. Minha filha! – olhava as outras duas em desafio. Queria ver quem se atreveria a criticar. Na sua vista, ninguém.
Elisa ficou feito doida, não tinha ideia de como fosse a irmã, de agora em diante podia imaginá-la melhor, tão linda na fantasia de Odalisca. A notícia da descoberta da revista, transmitida em carta de Elisa, trouxe a primeira pista, pois Tieta, na resposta, revelou o pronome do marido: quem a tinha nos braços, no ritmo do samba carnavalesco, era Filipe, seu bem-amado esposo. Filipe de que não disse.
Não muito depois, em carta datada de Curitiba, fez referência aos negócios de Filipe, industrial com interesses no Paraná. De outra feita, desculpando-se, atribuiu a demora do envio do cheque – uma semana de atraso – à enfermidade do comendador a cuja cabeceira a dedicada esposa dera tempo integral. Filipe, industrial e comendador.
Para Perpétua bastava; aliás bastava-lhe o cheque, sendo o resto supérfluo. Elisa, ao contrário, desejava saber mais, muito mais. Durante horas inteiras comentava com Carmosina as reservas da irmã: tem vergonha de nós, medo que a gente abuse da bondade dela. Esquiva-se, no fundo com razão.
Com razão, dona Carmosina é quem mais sabe. Tieta saíra corrida – aqui não é casa de puta! – moída com pancada por denúncia de irmã mais velha. Boa demais, isso é o que ela é, pois esquecera vexame, delação, a surra, o cajado de marmelo para vir em socorro da família. Boa demais, um anjo, concordava dona Carmosina. Quanto ao motivo das reservas e das reticências a agente dos Correios e Telégrafos silenciava: sobre esse assunto traçara, em segredo, teoria própria.
Reuniu dados, indícios, pistas, mistério digno de Hercule Poirot. Dona Carmosina o resolveu em definitivo quando começaram a chegar as encomendas postais com os elegantes vestidos, as saias e blusas finas, de medidas diversas.
Antonieta, em breve frase, explicara a razão dos diferentes talhes: estou mandando uns vestidos quase novos, meus e de minhas enteadas. Enteadas, notem bem, filhas do comendador Filipe mas não dela, que não tinha filhos. Claro, como a luz do dia, dona Carmosina Sherlock Holmes. Quem, em Agreste, a iguala, suplanta em inteligência?
Dissolução do vínculo conjugal com separação de corpos e bens, oito letras, divórcio.
Divórcio ou desquite, no Brasil não há divórcio, este país mais atrasado!, e eis a explicação certa e correcta, não há outra.
E aqui façamos nova pausa, um pouco de suspense, próprio dos folhetins.
Voltaremos após os comerciais, como dizem os locutores quando, no melhor da intriga, no momento mais empolgante, interrompem as novelas radiofónicas para anunciarem sabão em pó e marcas de cigarro, deixando Elisa trémula e vibrante.
A resposta não tardou sequer um mês. Antonieta enviou um cheque em nome do major, pedindo-lhe o favor de descontá-lo e entregar o dinheiro a Zé Esteves, destinava-se a ajudar o pai e a madrasta nas despesas. O pai podia contar com aquele auxílio mensalmente. O valor do cheque despertou atenção e cobiça: dinheiro grosso, bem mais do que o casal necessitava para pagar o casebre onde habitava, mesmo pondo em dia os alugueis atrasados, para a comida e para a cachaça medida mas indispensável à dieta do Zé Esteves. Perpétua insinuara divisão da ajuda mas um olhar do velho, o bastão erguido em arma de guerra, foi suficiente para encerrar o assunto. Para evitar a ida do Major a Alagoinhas, onde fica a mais próxima agenda do banco, seu Modesto Pires, dono do curtume, fez o favor de descontar o cheque. Esse primeiro e todos os demais.
Quanto às perguntas nem sombra de resposta, resumindo-se Antonieta a informar que graças a Deus gozava de saúde, casara-se e era feliz apesar de não ter filhos. Sobre o marido, nome, profissão, idade, nenhuma palavra. Endereço? Nenhum melhor, mais seguro, do que a Caixa Postal 6211, toda a correspondência para ali dirigida chegaria às suas mãos.
No transcurso de mais de um decénio, as relações epistolares entre Tieta e a família mantiveram-se absolutamente regulares; uma carta por mês de cada lado, a de São Paulo, poucas linhas, papel e envelope de cor, perfumados. Variando a cor de ano para ano, o perfume mudara uma única vez. Mais suave e discreto o último, estrangeiro com certeza.
A quantia do cheque crescendo, não somente por causa da inflação. Quando Elisa teve menino e dona Carmosina acentuara as dificuldades de Astério, Tieta somou à ajuda ao pai certa quantia mensal para o leite do menino e sua futura educação. Fazendo o mesmo quando Perpétua lhe escreveu dramática e, por uma vez na vida, sincera, chorando a morte do marido perfeito, a deixá-la viúva com dois filhos nos braços, necessitada. Boca de siri sobre as casas de aluguer, as economias no banco, mas Tieta já se dera conta da diferença de sorte das irmãs pois mandava para uma e outra importância igual: se Perpétua tinha dois filhos, bem maiores eram as dificuldades de Elisa. Começaram a chegar os pacotes de roupa usada, os presentes de Natal e de aniversário, mas dela e do marido pouco mais soubera.
Muito pouco, quase nada, mas o suficiente para dona Carmosina juntar as peças e desatar o nó.
Há uns nove anos – nove anos e nove meses, exactamente – num número de Carnaval da revista Manchete, dona Carmosina reconheceu, apesar dos cabelos oxigenados, numa fotografia de foliões em plena animação no baile do Teatro Excelsior, na capital paulista. Ali estava ela, bem no centro da foto, feliz, aconchegada e amorosa nos braços de senhor de certa idade, a se acreditar nos cabelos brancos. Infelizmente do cavalheiro via-se apenas as costas, pois dançavam; ela sim, estava de frente, a boca aberta em riso, o rosto franco e brejeiro, uma gentil senhora, não mais a jovem estabanada cuja partida de boleia num caminhão Carmosina testemunhara. Crescera em formosura, opulenta de formas. Jamais fora magricela, sua beleza tinha onde pegar-se.
Dona Carmosina convocou a família inteira, foi uma sensação. Perpétua balouçou a cabeça, concordando. Antonieta, não havia dúvida; engordara e oxigenara os cabelos. Também o velho Zé Esteves reconheceu a filha:
- Tá pimpona, de cabelo pintado, na moda. Deus te acrescente. Minha filha! – olhava as outras duas em desafio. Queria ver quem se atreveria a criticar. Na sua vista, ninguém.
Elisa ficou feito doida, não tinha ideia de como fosse a irmã, de agora em diante podia imaginá-la melhor, tão linda na fantasia de Odalisca. A notícia da descoberta da revista, transmitida em carta de Elisa, trouxe a primeira pista, pois Tieta, na resposta, revelou o pronome do marido: quem a tinha nos braços, no ritmo do samba carnavalesco, era Filipe, seu bem-amado esposo. Filipe de que não disse.
Não muito depois, em carta datada de Curitiba, fez referência aos negócios de Filipe, industrial com interesses no Paraná. De outra feita, desculpando-se, atribuiu a demora do envio do cheque – uma semana de atraso – à enfermidade do comendador a cuja cabeceira a dedicada esposa dera tempo integral. Filipe, industrial e comendador.
Para Perpétua bastava; aliás bastava-lhe o cheque, sendo o resto supérfluo. Elisa, ao contrário, desejava saber mais, muito mais. Durante horas inteiras comentava com Carmosina as reservas da irmã: tem vergonha de nós, medo que a gente abuse da bondade dela. Esquiva-se, no fundo com razão.
Com razão, dona Carmosina é quem mais sabe. Tieta saíra corrida – aqui não é casa de puta! – moída com pancada por denúncia de irmã mais velha. Boa demais, isso é o que ela é, pois esquecera vexame, delação, a surra, o cajado de marmelo para vir em socorro da família. Boa demais, um anjo, concordava dona Carmosina. Quanto ao motivo das reservas e das reticências a agente dos Correios e Telégrafos silenciava: sobre esse assunto traçara, em segredo, teoria própria.
Reuniu dados, indícios, pistas, mistério digno de Hercule Poirot. Dona Carmosina o resolveu em definitivo quando começaram a chegar as encomendas postais com os elegantes vestidos, as saias e blusas finas, de medidas diversas.
Antonieta, em breve frase, explicara a razão dos diferentes talhes: estou mandando uns vestidos quase novos, meus e de minhas enteadas. Enteadas, notem bem, filhas do comendador Filipe mas não dela, que não tinha filhos. Claro, como a luz do dia, dona Carmosina Sherlock Holmes. Quem, em Agreste, a iguala, suplanta em inteligência?
Dissolução do vínculo conjugal com separação de corpos e bens, oito letras, divórcio.
Divórcio ou desquite, no Brasil não há divórcio, este país mais atrasado!, e eis a explicação certa e correcta, não há outra.
E aqui façamos nova pausa, um pouco de suspense, próprio dos folhetins.
Voltaremos após os comerciais, como dizem os locutores quando, no melhor da intriga, no momento mais empolgante, interrompem as novelas radiofónicas para anunciarem sabão em pó e marcas de cigarro, deixando Elisa trémula e vibrante.
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