segunda-feira, janeiro 05, 2009


Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 10

DA PRECE PELA SAÚDE DA VELHA TIA DESCONECIDA, CAPÍTULO CASTO E NOVO



…vida, doçura, esperança nossa, salve! As palavras da oração nascem sinceras e sentidas da incómoda espinha, do nebuloso pesar. Maquinais, no entanto, solta-se livre o pensamento em busca da tia nas vascas da morte ou já no caixão – dela pouco sabe, praticamente nada.

Vida, doçura e esperança, a tia de São Paulo, que não esteja defunta como garante a mãe – a mãe vê tudo em luto – que se afirme a crença da tia Elisa e o perigo desapareça, a Vós bradamos os degredados filhos de Eva. A Vós suspiramos e oferecemos pela saúde da tia Antonieta um rosário rezado de joelhos sobre grãos de milho. Promessa mixa, mísera oferta em paga de portentoso milagre.

Dá-se conta e, exagerado, amplia para uma semana inteira de rosários completos e macerados joelhos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas, salvai da morte a tia Antonieta.

Que doença a matara ou a estava matando? Nenhuma referência ouvira, a mãe e a tia Elisa devem saber mas guardam segredo, na certa por se tratar de doença ruim, cujo nome não se pronuncia, tísica ou câncer.

Quem comunicara a notícia, como chegara, em carta, em telegrama? Quando o pai de Austragésilo faleceu, houve um primeiro telegrama anunciando estado de saúde grave com hemoptise. Duas horas depois o Reitor do Seminário viera em pessoa com um segundo telegrama, o fatal, e palavras de consolo. Apertara Austragésilo contra o peito, falara sobre o reino dos céus. Do mesmo modo agora, o primeiro telegrama já chegara comunicando doença e diagnóstico pessimista.

A mãe, experiente da vida, percebera o engodo, a intenção de prepará-los para o pior; tia Elisa só perderia a esperança quando o segundo afirmasse a verdade nua e crua. Neste vale de lágrimas eis pois advogada nossa, para Vós Mãe de Nosso Senhor o impossível não existe; podeis interromper o custo dos telegramas, revogar sentenças de morte, o Filho atende todos os Vossos pedidos. Contrito, Cardo renova a promessa sete vezes maior. Promessa e tanto.

Zero sobre a doença, e sobre tia Antonieta? Zero vezes zero, imprecisas, fugazes notícias, tia desconhecida, quase uma abstracção. Não obstante ninguém tão concreto, presente, indispensável na vida de cada um deles, de toda a família. A tia de São Paulo, a ricaça.

Para Ricardo apenas um nome, um apelido de infância, Tieta, vagas e entusiásticas referencias ao marido milionário e comendador, mensalmente a carta e o cheque, os presentes a bola de futebol número cinco, dando solidez e contorno a uma imagem, que imagem?

Olhos misericordiosos a nós volvei, neste vale de lágrimas, de pobreza e limitações, a imagem da santa padroeira, a protectora a possibilitar pequenas regalias e o dinheiro que a mãe deposita na Caixa Económica para a festa da primeira missa, ainda tão distante, e para os estudos de Peto se um dia Peto se dispuser a estudar. Ao pensar na tia jamais vista, não a compara com a Virgem a quem roga por ela e, sim, com a Senhora Sant’Ana, padroeira da cidade, protectora da família, da sagrada família e de todas as demais. Na chama das velas enxerga a imagem da velha senhora, de mãos generosas, plena de ternura, doce patrona.

Será assim débil anciã ou ainda se mantém rija e disposta, igual à mãe? Qual das duas a primogénita? Sobre a idade da tia, Ricardo nunca ouviu a menor referencia, a mãe diminui a sua quando perguntada. A ausente deve ser bem mais velha, não é ela a rica, a poderosa, a doadora, o verdadeiro chefe da família, a quem o próprio avô reverencia? Boca de praga e maldições, a resmungar queixas e ameaças, o avô desmancha-se em louvores ao pronunciar o nome de Tieta.

Deus lhe dê saúde e aumente a fortuna, ela merece a boa filha. Anciã de passo cansado, cabelos brancos – ou ela ainda pinta os cabelos como outrora? Na chama das velas são brancos os cabelos da tia Antonieta.

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