sábado, janeiro 03, 2009


Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 8


ONDE RICARDO, SOBRINHO E SEMINARISTA, ACENDE VELAS CONTRADITÓRIAS AOS PÉS DOS SANTOS; CAPÍTULO BANHADO EM LÁGRIMAS, ALGUMAS DE CROCODILO



- Então? Cadê? – interroga Perpétua e ela própria responde vitoriosa, aflita vitória: - Carta e cheque, babau, minha miss Baía! – derrama sobre a irmã o fel a lhe amargar a boca: - Se eu fosse Astério, você não saía para a rua nesses trajes indecentes, de peitos de fora. Mas agora tudo vai acabar. Vai começar o tempo da pobreza.

Eliza deixa-se cair na cadeira, cobre o rosto com as mãos, não retruca: poderia lembrar que, na hora da divisão dos presentes, Perpétua não critica os vestidos, trata de empalmar os mais finos e ousados para vendê-los a bom preço em Aracajú, a senhoras ricas. Cala-se, porém; gostaria, isso sim, de tapar os ouvidos para não escutar; a voz avinagrada da irmã torna as palavras mais cruéis.

Antes Elisa passara na loja, naquela hora já repleta, Osnar escornado na cadeira. Trocara apenas um olhar com o marido, suficiente para Astério largar o metro e a peça de madrasto. Osnar pusera-se de pé: bom dia, dona Elisa. Bom dia, patroa – Sabino brechou rápido do decote no alto às ancas em baixo, salve, salve quem inventou estes vestidos justos, colados ao corpo, marcando até as pregas da bunda, moda mais jeitosa. Um felizardo, o patrão.

- Três metros… - reclamou a freguesa a reparar também na elegância de Elisa, aquilo sim era fazenda.

Astério voltara a medir, mal sustendo metro e tesoura.

- Vou até casa de Perpétua, daqui a pouco mando Araci com a marmita – avisara, despedindo-se: - Até lá seu Osnar, esteja a gosto.

Durante o percurso, não pudera impedir as lágrimas. Cada palavra, na loja, custara-lhe esforço e contenção. Agora, arreia na cadeira sob a voz de Perpétua a criticar-lhe o decote como se não bastassem as mãos vazias de carta e cheque.

- Bateu a caçoleta, eu disse. Tu ainda duvida? – além da voz sibilante, o dedo em riste.

Elisa descobre a face, balança a cabeça, vencida, as lágrimas escorrem.

Lágrimas, de que adiantam? Não resolvem nenhum problema, não substituem o cheque, não ressuscitam a morta, não determinam as medidas a tomar. Perpétua, no entanto, conhece e respeita as conveniências, exigente nas formalidades. Do bolso da saia negra retira o lenço e com ele toca o canto dos olhos – nem por invisíveis deixam de ser lágrimas de luto. Coloca um acento de dor na rispidez da voz, ao gritar pelo filho mais velho:

- Cardo! Vem aqui, depressa! Ai, meu Deus!

Leva o lenço novamente aos olhos, Elisa deve ver, testemunhar o sentimento a afligi-la quando a hipótese se confirma e a morte de Antonieta já não admite controvérsia. Deus a tenha em sua guarda e lhe perdoe os pecados; a assistência ao pai e às irmãs há de contar a seu favor na hora do juízo final.

Surge correndo um rapagão suado, os pés descalços. Forte, alto, bonito, dezassete anos desabrochando em espinhas no rosto. Sobre o lábio risonho, a sombra de buço. Vestido apenas um calção – estava chutando bola no quintal.

- Tá me chamando, mãe? – ao notar Elisa, acrescenta: - Bênção, tia.

Respira saúde e satisfação, não percebe de imediato a atmosfera fúnebre da sala. Pela terceira vez, ante a presença do filho, Perpétua enxuga lágrimas escassas mas finalmente visíveis. O adolescente dá-se conta, põe-se sério:

- Aconteceu alguma coisa ao avô? De manhã cedinho, quando foi ajudar a missa, vi ele na feira fazendo compras…

Perpétua ordena:

- Vá buscar uma vela benta, acenda no oratório. Tua tia Antonieta, coitada…

- Tia Tieta? Morreu?

Vencida, sim, convencida, não, Elisa levanta a cabeça, rebela-se:

- Ainda não se sabe de nada certo…de nada!

Perpétua nem responde, reafirma a ordem:

- Faça o que estou mandando, sei o que digo: uma vela nos pés de Nosso Senhor Jesus Cristo pela alma de Antonieta. Em seguida, tome banho, vista a batina, por hoje o recreio terminou. Cadé Peto?

- Foi pescar no rio…

- Diga a ele para vir para casa. Depois do almoço vamos falar com o padre Mariano. – Um suspiro, a mão sobre o peito, a conter certamente o coração.

Atónito, Ricardo, sem palavras, preso à sala pela notícia. Volta-se para Elisa. Os ombros curvos acentuam o decote no colo moreno. Apesar das críticas constantes da mãe, o moço jamais reparara na elegância da tia. Pela primeira vez dá-se conta de como ela veste bem e se enfeita; parece uma santa, ali desamparada na cadeira, sofrida, a recusar a morte da irmã, lutando contra a evidência reflectida na fisionomia e nos gestos da mãe. Na voz da tia, abafada de choro, um pedido, uma súplica:

- Vamos esperar ter certeza para falar nisso com o Reverendo… por que tanta pressa?

(continua)

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