sexta-feira, março 27, 2009


Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 83


Nos problemas de álgebra, nas páginas impressas, saltavam inteiros os seios entrevistos pela metade no decote do penhoar; os fios de pêlo apontados pelo irmão na fresta do biquini alongavam-se rio a dentro, atando pulsos e tornozelos trazendo-o de retorno às pedras onde ela descansava, descontraída, as pernas abertas, inocente de tanta cobiça e ousadia. Até mesmo durante o sagrado sacrifício da missa, a fumaça do turíbulo ao evolar-se traçava a curva e o balouço da bunda, redonda, solta, morena, percebida sob a curva da camisola.

Labutara nas noites inquietas, a adivinhar devassidões quando se esforçava por enxergar no sonho castas imagens, vidas santas, alegrias puras. Antes de perder-se por completo ali, em Mangue Seco, esteve à beira do pecado todas as noites, ora adormecido, ora acordado, e se jamais o completou foi por não saber como fazê-lo. Mal terminava as orações e cerrava os olhos, ainda com o nome de Deus nos lábios e o pensamento na salvação da alma, e já o amaldiçoado enchia a rede de seios e coxas, de bundas e pêlos, a tia inteira e nua.

Nem os rogos, nem as preces, nem as promessas, nem as fugas. Transtornado, abrira o livro santo na página da fuga para o Egipto, conselho de Deus. Montou no burro e se tocou no rastro do padre Mariano para a Rocinha em vez de tomar a lancha para Mangue Seco onde poderia vê-la quase desnuda na praia, acompanhá-la mar adentro, salvando-a de morte certa quando a arrebentação da barra a estivesse afogando. Heróico, lutaria contra as vagas, tomando-a finalmente nos braços, trazendo para a praia o corpo inerte apertado de encontra o peito.

Montado no burro, fugira da tentação. De que adiantara? Durante todo o percurso para a Rocinha ele a teve nos braços, apertada contra o peito, no trote do animal. Ao roçar o cabeçote da sela, comprimira entre as coxas as ancas da tia.

Débeis forças, vontade fraca, armas frágeis para enfrentar o poder e as tramas do Cão. Para tentá-lo na beira do rio, Belzebu utilizara Peto; para enviá-lo a Mangue Seco, por mais incrível possa parecer, servira-se da mãe, devota e rígida.

Ele deveria ter-se oposto, discutindo, alegando a hora tardia, fingindo-se doente. Não o fez. A mãe não precisou de repetir a ordem: saíra correndo em busca de Pirica para contratar o barco. Compreendeu que o Tinhoso escolhera Mangue Seco para local do crime e não obstante para ali partira de livre vontade. Durante a travessia dava pressa a Pirica apesar de saber que se de lá desembarcasse, estaria perdido.

Assim aconteceu: em Mangue Seco o Cão o derrotara e possuíra.

Os dedos rumam para o queixo, deixando na boca um gosto de polpa fresca. As palavras, arrancadas do estômago, cortam o pulmão estranguladas:

- Estou condenado e levo a tia comigo para o fogo do inferno.

Sou ruim demais, me perdi e arrastei a tia.

A mão se espalma, toda ela fogo, vinda do queixo para o pescoço. Na hora do pecado, até as labaredas são deleite, ninguém sente as dores das queimaduras. Mas outro é o forno do inferno, outro e eterno.

- Me leve, sim, cabrito. Novinho como os que eu carregava ao colo.

Viúva honesta, ele a fizera renegar o recato e a virtude da cativa condição, manchar a memória do marido, enlouquecer a ponto de dizer coisas assim, sem pé nem cabeça, murmurar frases sem nexo, aberta em riso de contentamento, não se dando conta do mal praticado, indiferente ao castigo.

Ele fora o único culpado mas a condenação atingia os dois, sobre a cabeça da tia cairá igualmente a cólera de deus. Sobre as duas almas que não souberam resistir aos corpos vis, à carne podre. Ele, o único culpado. A tia lhe dissera que fosse embora, se quisesse, apontava para baixo dos cômoros, ele não quis, preferiu ficar. Consciente de que, se ficasse, iria desrespeitá-la, ofender a Deus, prevaricar, entregando-se de vez a Satanás, servindo-lhe de agente na degradação da alma da viúva, responsável por sua perdição.

- Quem me dera morrer.

- Nos meus braços.

A mão desce dos ombros para o peito. Ai, tia, não. Não vê que o demónio está solto, sobrevoa dunas e mar, morcego imenso a tapar a lua, a impor a noite negra e fria? O tentador está ali, presente, como sempre esteve desde o momento em que a tia surgira na porta da marinete de Jairo. Fora ele, o demónio, que falara pela boca de Osnar comparando-a a uma fruta madura, sumarenta. Naquela hora começara o combate, lá mesmo perdido. Perdido a cada momento mais, nos passos nocturnos soando no corredor, nas rendas esvoaçantes do negligê, no biquini minúsculo, na minúscula camisola, nas mãos untadas de creme, nas palavras truncadas do padre-nosso, nos sonhos prenhes de desejo quando a tinha nua junto de si, na rede e não sabia o que fazer. Agora sabe e por isso pagará durante a eternidade. Pagarão os dois, o culpado e a vítima, ele e a tia. Quem sabe, Deus é justo, terá piedade da tia e lhe reduzirá a pena a um tempo de purgatório. Por mais longo que seja, ainda que estenda por milhões de anos, é tempo e não eternidade, tem limite e fim. Um dia a sentença termina, liberta-se o condenado, mas as penas do inferno, essas não acabam jamais. Nunca jamais, repete a cada segundo o relógio do inferno. Assim contava Cosme ao falar do castigo eterno.

- Deus é bom e sábio, terá piedade, sabe que a tia não teve culpa.

Cresce o riso alegre e inconsciente, a mão desce pelo peito agoniado.

- Não diga tia, diga Tieta.

A mão no peito sufocado de vergonha, de remorso, roto de medo; como fitar a face de Deus na hora do juízo final? A mão acalma o pesadelo, transforma os sentimentos, desata o nó, rompe a treva, mas não apaga as fogueiras da ira celeste pois toda ela, palma, punho e dedos, é brasa ardida, calor divino. Divino? Assim Satanás engana e condena os homens. Esse calor divino se transformará em dor insuportável nas profundas do inferno, consumindo lenta e eternamente os pecadores.

- Só eu tenho culpa, Deus há-de perdoar-lhe, tia.

- Tia, não. Tieta, sua Tieta.

Como não percebera a voz de Deus na voz da tia apontando-lhe a descida, o caminho certo, o sendeiro a conduzi-lo à salvação, ao sacerdócio, ao paraíso?

Paraíso? Qual deles? A mão conduz ao paraíso: ainda há pouco ele enxergara a beleza, a doçura do céu em cada detalhe do corpo exposto ao luar. A mão brinca com os cabelos nascendo no peito jovem e másculo. O Major orgulhava-se do tronco cabeludo, peito e costas, prova de macheza. Um macho, o pai. O filho, castrado pelo voto feito pela promessa da mãe, impedido. Mas o demónio o levara a levantar-se contra a lei, despertara-lhe a carne morta, pervertendo-o. Fizera do mancebo casto, que desconhecia desejos e maus pensamentos, macho impuro sem controle sobre o corpo e a alma, um bode.

Não apenas: utilizara-o para conquistar a tia, perdê-la, condená-la.

- O purgatório dura uns tempos e acaba, tia. A culpa é minha; Deus é justo, não mandará a tia para o inferno.

- Cabrito tolo, sou cabra velha. Me chame de cabra, minha cabra.

Jamais, mesmo se quisesse, nem sequer na hora do pecado, quando a cabeça não pensa e a boca geme e grita. Cabra dissera Osnar, voz do demónio, quando a vira deslumbrante na porta da marinete de Jairo, acrescentando indecente comentário sobre a fartura do ubre, o Imundo. E ele? Onde mergulhara a cabeça, pousara os lábios, onde, desvairado, mordeu?

- Me perdoe, tia. Jure que me perdoa.

- Diga Tieta.

Na barriga de músculos rijos navegam os dedos em descoberta. O dedo mínimo enfia-se no umbigo, faz cócegas, a brasa cresce em labareda, consumindo o pecado, cobrindo o crime, acendendo o luar:

- Quero lhe dizer, tia…

- Tieta.

- Quero lhe dizer que mesmo tendo de pagar durante a eternidade no fogo do inferno, ainda assim…

- Diga, meu cabrito…

- … ainda assim, não me arrependo. E se o castigo pudesse ser pior, mesmo assim…

- Diga…

- … mesmo assim eu queria…

Onde a mão? A chama queima da ponta dos pés à ponta dos cabelos, percorre o corpo, a testa lateja, abre-se a boca, cresce o Cão.

- Queria o que, cabrito? Me diga…

- Estar aqui com a tia.

- Tieta.

A mão procura, encontra, apalpa, empunha. Desmedido Demónio.

- Tieta, não me arrependo, ai não, Tieta!

- Diga cabra, meu cabrito.

Onde estão as trevas e o inferno e o temor de Deus? Sob o luar, o paraíso se abre para o Cão, estreita porta de mel e rosa negra. Vale o inferno e muito mais. Vem, meu cabrito! Ai, cabra,
minha cabra, sou bode inteiro, em
fogo me consumo.

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