Adeus, meu querido…
Que posso fazer quando me apercebo que não voltarei a receber mais uma das tuas chamadas de telemóvel em que, invariavelmente, perguntavas: “então meu querido?”, que não seja tentar reter lágrimas de saudade?
Foi anteontem, era mais uma das sardinhadas que organizavas em tua casa, pretexto para reunires os teus amigos, especialmente aqueles de quem gostavas como se fossem teus irmãos.
Tínhamos começado a almoçar quando o teu “amigo-irmão”, Rui Silvério, recebeu um toque no telemóvel que lhe enviaste depois de te teres levantado da mesa sem nos apercebermos.
Pressentindo que se aproximava mais um “surto” da esclerose múltipla de que sofrias, ausentaste-te para uma outra parte da casa sem que depois conseguisses evitar um mudo pedido de SOS.
Foram minutos de pânico, desespero, em que cada um de nós procurou agarrar a vida que se escoava de ti. Os apelos eram dramáticos: “vá, companheiro, reage, abre os olhos, vive…” mas neste último “surto” já não haveria retorno.
Com os teus amigos de quem tanto gostavas à tua volta, em desespero, perfeitamente atordoados, tinhas adormecido para sempre em paz e sem sofrimento.
Ao longo de cerca de vinte anos, até aos quarenta e cinco, carregaste uma sentença de morte denominada esclerose múltipla mas durante esses anos em que o “copo foi enchendo até à gota que o fez transbordar”, na expressão do Zé Manel, médico, amigo,“irmão”, tu viveste… caramba, se viveste, como qualquer outro mortal dificilmente conseguirá viver em cem anos que cá esteja.
Durante anos exploraste estufas na Concavada produzindo principalmente feijão verde e meloa com os elogios dos técnicos da especialidade, mas lutando contra um micro clima que era adverso foste obrigado a desistir.
Montaste uma empresa de serviços na área das limpezas industriais e na Central Eléctrica do Pego, competindo com outras bem mais poderosas, foste sempre ganhando todos os concursos periódicos para a renovação do contrato de prestação dos serviços, pelas tuas imensas capacidades de trabalho, inteligência e qualidade das relações humanas que desenvolvias.
Em colaboração com o teu pai, meu único irmão, do qual, em muitos aspectos, eras uma continuação, montaste com total sucesso uma actividade de comércio de móveis que exigia permanentes deslocações à Holanda.
Construiste e exploraste um empreendimento turístico em Pipa, no Brasil e mantiveste negócios no imobiliário em João Pessoa e Natal.
Em incursões prolongadas a Cuba, percorrendo o seu interior, conseguiste trazer a Portugal músicos daquele país que actuaram e ganharam dinheiro melhorando as condições de vida na sua terra e abrindo-lhes as perspectivas do mundo deixando atrás de ti, por essas terras e essas gentes, um rasto de humanidade.
Tudo isto fizeste com respeito pelos outros, sem amachucar ninguém, ajudando, estendendo a mão, semeando amigos, deixando por todo o lado por onde passaste pessoas que te adoraram.
Foi assim porque o coração que finalmente se recusou a manter-te vivo por mais não poder, era grande, enorme... e bom.
Na minha qualidade de homem orgulho-me que tenhas sido meu sobrinho e se me é permitido este desabafo, dizer que aquilo que aconteceu contigo só não constitui a maior injustiça deste mundo porque não há critérios ou preocupações de justiça nestas coisas.
Às cegas, ao acaso, as escleroses múltiplas e muitos outros males são por esse mundo distribuídas pelas pessoas sem cuidar de nada, de forma totalmente aleatória e eu próprio me sentia incomodado por ter a saúde que tu não tinhas, sentia-me "injustiçado" porque tu eras melhor que eu e da maioria de qualquer um de nós.
Sei que relativamente a estas coisas da vida e da morte pensavas como eu: desligado o interruptor da vida regressamos ao mesmo local onde sempre estivemos até nascer. Tal como então, nada nem ninguém jamais te incomodará mas atrevo-me a dizer, que mesmo com a esclerose múltipla, pelas muitas pessoas que te amaram nesta vida, foi um feliz acaso teres nascido.
Adeus, meu querido.
Tio Jaquim.
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