segunda-feira, agosto 03, 2009


A PRINCESA






E num dia, igual a tantos outros, quando saía para tomar o meu cafezinho matinal lá estava, colado ao vidro da porta do meu prédio, aquele papel da Agencia Funerária com a cruz negra, bem visível, a anunciar a morte de um dos meus vizinhos.

Era a senhora do 5º Dto, com quem me cruzava frequentemente levando pela trela, para o passeio higiénico, a cadelinha que mais parecia uma bolinha de carne em cima de quatro patinhas.

-Os meus sentimentos, disse eu ao viúvo na primeira oportunidade… é a vida… acrescentei sem jeito nem imaginação.

- Obrigado meu vizinho, felizmente foi tão rápido que nem chegámos a saber do que morreu… fechou os olhos simplesmente.

Era assim a minha vizinha, despachada a viver, despachada a morrer, um dia cheia de vida no outro sem ela.

Às vezes, encontrava-a no café que ficava junto da mercearia da nossa rua, meia sentada na cadeira como se estivesse sempre de partida ou pouco habituada às pausas para descanso com a cadelinha deitada aos seus pés como se fosse um acrescento seu.

Não era pessoa para grandes conversas, quando falava era em monólogos, bem sonantes, sem cuidar de quem a ouvia, eram desabafos que não aceitavam o contraditório porque quem sabia da vida era ela, mulher de trabalho que tinha criado e educado uma filha e servido não sei quantos senhores e senhoras por esse mundo fora: País de Gales, Londres, EUA, trabalhando a sério, no duro, cumprindo ordens, satisfazendo e aturando os caprichos de gente rica, em suma, dobrando a espinha, e a alma… “não era como agora em que os jovens só querem é gozar”.

Talvez por isso, aos oitenta anos, o azedo que se escapa dos seus desabafos, o orgulho de uma vida inteira de trabalho não chegou para lhe adoçar a velhice.

A minha vizinha do 5º Dtº morreu em paz, tudo o que em consciência devia ter feito na vida ela fez e por isso, quando chegou a hora, nem um ai, ou um simples adeus, simplesmente fechou os olhos, a missão estava cumprida.

Vi o meu vizinho uns dias mais tarde com a cadelinha pela trela e os meus olhos abriram-se de espanto, o animal estava pela metade.

- Então, vizinho, que aconteceu à cadelinha que nem parece a mesma?

- Ia morrendo de desgosto, durante uma semana recusou-se a ingerir fosse o que fosse para além de água, tive que a levar ao veterinário… agora já está melhorzinha…

Não fora o apoio do viúvo e a intervenção do médico veterinário e a “Princesa”, não teria sobrevivido à sua dona, e isto fez-me pensar.

Com toda a sinceridade, não nutro pelos animais domésticos o mesmo “respeito” e “admiração” que sinto pelos animais selvagens… por questões de origem, proveniência.

Uns, são o resultado do processo evolutivo: estão cá porque mereceram cá estar, são vencedores, campeões, enfrentaram os desafios da natureza e resistiram, adaptaram-se, as suas estratégias de sobrevivência mostraram-se ganhadoras.

Os outros, bem, os outros, são o resultado de negócios vantajosos recíprocos, digamos assim. O homem precisou deles, eles próprios transformaram-se em nossas estratégias de sobrevivência, são da nossa responsabilidade, não da responsabilidade da natureza.

Mas aqui abro duas excepções:

- A primeira, para o cavalo. Há 5.500 anos entrou na nossa vida e revolucionou-a por completo tornando o mundo mais pequeno, para o bem e para o mal aproximou-nos uns dos outros, a história ganhou outra dinâmica, ele foi o avião dos nossos dias.
Mas há 30.000 anos as suas imagens preencheram as paredes das grutas, no tempo do Homem do Paleolítico, fazendo parte do seu imaginário. As suas formas esbeltas, harmoniosas, as crinas ondulando ao vento em galopes libertadores seduziram os nossos antepassados. É certo que também o caçávamos para a nossa alimentação mas sua participação na nossa dieta não justificava tantas reproduções de que foi alvo pelos artistas de então.

Já por essa época gostávamos mais de os ver do que os comer…

- A segunda excepção é recente, conhecia-a agora: é a Princesa!




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