terça-feira, setembro 29, 2009


TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº 245




Afastam-se os passos de Tieta, aproximam-se os de Ascânio. Excitada e trémula Leonora aguarda – silente e lívida, tu me aguardavas, escrevera o vate Barbozinha no verso para Tieta, ah!, os poetas sabem do exposto e do oculto!

Se Ascânio a aceitar de criada ou amásia, ela jamais partirá de Agreste, Mãezinha retornará sem companhia. Mesmo sendo puta sabe cuidar de uma casa, é fanática por limpeza, cozinha razoavelmente, desde menina lava a própria roupa, lavou e engomou a de Cid Raposeira, remendou-lhe calças e camisas. Rafa precisa de descansar, o próprio Ascânio diz que a velha mãe de leite está caduca, esquece as coisas, cochila o dia inteiro. O vulto surge entre os coqueiros, na mão um tubo enorme:

- Nora!

- Ascânio, meu amor!

O abraço estreito, o beijo ardente, não mais roçar de lábios tímido, rola no chão o canudo. Rolam estrelas no céu, as estrelas do vate Barbozinha iluminando o caminho para os cômoros. Leonora oferece o braço a Ascânio, aponta com os olhos a massa alvadia das dunas.

- Vamos?

- O tempo de guardar isso aí. Depois te mostro – Pega o tubo no chão, entrega a Leonora que o leve para a sala. Beijam-se novamente antes de saírem andando entre as estrelas.

Na marinete, horas antes, Ascânio anunciara triunfante:

- Não vai tardar e essa trilha infame irá ser uma das melhores da Bahia e do Brasil. Duas pistas largas de asfalto, mão única, na prática uma auto-estrada.

Impressionados os passageiros pedem detalhes, ele os fornece, precisos.

A CBEP – Companhia Baiana de Engenharia e Projectos a que asfaltou o Caminho da Lama, sabem qual é, não? – está ultimando os estudos para a aprovação final da Brastânio. Ascânio regressa da capital trazendo o progresso na pasta negra de couro, moderna e cara, e no comprido e grosso canudo de metal.

A pasta, presente do doutor Rosalvo Lucena, depositada com um cartão gentil na portaria do hotel, guarda os materiais enviados pelo Magnífico Doutor, documentação exaustiva. No tubo, o desenho do decorador Rufo, aquele monumento! A voz de Ascânio adquiriu vigor e clareza, sílabas bem pronunciadas, palavras escolhidas e correctas. Todos sentem a modificação ocorrida: o esforçado jovem secretário da Prefeitura, de pequenos empreendimentos e sonhos irrealizáveis, transformou-se é um executivo realista e dinâmico. Na capital, tratando com homens de grande capacidade e grande coração amadurecera.

Quem sabe, por não lhe agradar a notícia sobre a próxima pavimentação da estrada, a marinete de Jairo, apelidada por alguns maldizentes de Mula do Lamaçal, entrou em pane, uma daquelas. Quando por fim chegaram a Agreste, caía o crepúsculo, hora romântica. Na porta da casa de Perpétua o seminarista Ricardo, de batina, relógio de pulso, no dedo anel de jade, risonho, informou estar a prima Leonora em Mangue Seco. Sem sequer dizer até logo, Ascânio partiu à procura de condução.

Andam em silêncio para os cômoros, de mãos dadas, rindo um para o outro. Perscrutando-lhe a face envolta em sombra, Ascânio tenta compara-la com Pat, Nilsa, Bety. Impossível! Não apenas por ser Leonora infinitamente mais bela, sobretudo, porém pela imensa distância moral a separá-la daquelas piranhas. Piranhas, assim o jornalista Ismael Julião se referia ao mulherio reunido na beira da piscina; nem parece ser noivo de uma delas. Tipo repugnante, cabe razão ao doutor Lucena.

A face de Leonora reflecte pureza, fidalguia, sentimentos nobres. Percebe-se de imediato a família de bons princípios, a educação primorosa. As outras, coitadas, o que podem ser senão…piranhas, para não aplicar a palavra torpe e exacta. Em nenhum momento, naqueles dias e noites tão movimentados, Ascânio considerou estar traindo Leonora ao ir para a cama com Pat, Nilsa e Bety.

Em Agreste, ao menos duas vezes por semana, comparece à pensão de Zuleika Cinderela para descarregar o corpo numa quenga qualquer. Não se trai a amada, aquela que se escolheu para esposa, deitando-se com mulher dama. Mulher dama, piranha ou puta, sinónimos. Amor e cama são coisas diferentes, uma não tem a ver com a outra, assim como Leonora nada tem em comum com aquelas desvairadas da Bahia, as três suas conhecidas e as demais, entre as quais Astrud. Astrud, sim, igual a Pat, Nilsa e Bety; pior ainda, por hipócrita. Agora já nenhuma Astrud pode enganá-lo. Ascânio é outro, aprendeu a distinguir.

Sempre de mãos dadas e a sorrir, iniciam a subida do cômoro mais alto, os pés enterram-se na areia. Leonora tropeça numa palma de coqueiro, vacila, tomba, tenta reerguer-se, Ascânio a
levanta nos braços, leve corpo alado,
síflide – os poetas acertam sempre, não erram nunca. Nos braços a conduz. Leonora encosta-se em seu peito, rosto contra rosto, as respirações se cruzam e se confundem.

Ao depositá-la de pé, no alto, beijam-se diante do abismo tenebroso e deslumbrante. Ali, em noite de lua cheia, ela roçara os lábios em seu rosto, quando Ascânio contara da traição de Astrud. Na noite sem lua a noite é ainda mais densa de mistério, imensa e obscura. Quando se desprendem do beijo, ela recorda, voz de cristal:

- Do lado de lá fica a costa de África. Não me esqueci. Só que a lua que
encomendei para hoje não
chegou, São Jorge não é meu chapa.

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