quarta-feira, setembro 30, 2009


TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº 246



Sentam-se diante do mar em fúria querendo romper e penetrar a terra. Tão grande emoção, pequeno riso, medroso. Feliz, Ascânio emudece; no entanto pensara as frases, escolhera cada palavra. Leonora pergunta:

- Correu tudo bem?

- Tudo. Muito bem. Depois te conto, timtim por timtim – Decide-se: - Agora quero te falar de outra coisa, de nós.

Leonora o interrompe, de repente aflita, o olhar na distância do oceano, infinitivamente triste, roto o canal da voz:

- Ascânio tem uma coisa que eu quero te dizer, tenho de te dizer. Ele tapa-lhe a boca com a mão, rápido. Tudo menos isso. Sabe o que Leonora deseja contar, não pode permitir que ela própria confesse o acontecido. Não quer ouvir de sua boca a narrativa, seria o pior dos sofrimentos. Se é necessário reabrir e revolver a chaga apenas fechada, deve caber a ele o sacrifício:

- Não diga nada eu já sei de tudo.

- Sabe? Quem lhe contou?

Dona Carmosina. Dona Antonieta disse a ela para me pôr a par. Para ver se eu desistia.

- Contou tudo? – Saltam as primeiras lágrimas.

- Tudo. Como o canalha do teu noivo te enganou, abusou da tua inocência. Lembras da viagem que fiz para Rocinha? Foi naquela ocasião. Mas o plano não surtiu efeito. Para mim o que aconteceu não tem importância. Eu te considero tão pura quanto a Virgem Maria.

As lágrimas escorrem pela face de Leonora, pranto silencioso. Ascânio as enxuga com beijos, exige:

- Só te peço uma coisa: nunca mais falaremos sobre isso, nem uma palavra. Está bem?

Afirma que sim com a cabeça. Ia lhe dizer outra coisa, contar a verdade, mas agora, diante do que acaba de ouvir, cadé coragem para falar? Irrompe o soluço. Ascânio o apaga com um beijo.

Um som distante, de onde vem? Do cômoro vizinho, entrevisto na sombra? Mal se enxerga mas se ouve cada vez mais distintamente doce gemer e pedaços de frases partindo-se no vento: ai meu Pedro, meu amor… Ascânio perscruta a noite, Leonora esboça um sorriso, usa o pretexto para romper o confuso círculo de enganos:

- É o engenheiro com a mulher. Mãezinha me contou: todas as noites.

- Vale a pena ser casado… - inveja Ascânio.

- Ascânio, aconteça o que acontecer, não pense nunca que eu quis te enganar. Jamais tive outro amor em minha vida. Antes de te conhecer não sabia o que era amar.

Quando ele, grato, se curva para beijá-la, Leonora o aconchega nos braços e num gesto inesperado o prende com as pernas, fazendo-o deitar-se sobre o seu corpo. Pega teu bode pelos chifres, arreia os quartos, aconselhara Mãezinha. Ascânio ainda tenta desprender-se, teme perder a cabeça e abusar de tanta inocência e confiança, fazendo por amor o que o canalha fizera por ignóbil cálculo. Mas ela o mantém seguro, corpo contra corpo, ele sente os seus seios, as coxas, o ventre, custa-lhe conter-se. Leonora murmura:

- Me perdoa não ser como pensaste. Vem, sou tua. Ou não me queres?

- Escorrem novamente as lágrimas.

- Ai, se te quero!

Intensificam-se os suspiros no cômoro vizinho. A ventania, cúmplice, levanta a barra do vestido de Leonora, ela se abre. Diante da costa de África Ascânio a teve e, no lugar do hímen perdido, tocou a fulva esteira de um cometa. Pela primeira vez na vida Leonora se entregou por puro amor, sem mescla de qualquer outro sentimento, bom ou ruim. Chora e ri. Foi cabrita desmamada, chiva batida pela vida. Naquele fim do mundo, em frente à costa de África, faz-se mulher, completa e feliz como quem mais o seja ou tenha sido. Possui um sol azul e uma lua negra.

Misturam-se os ais de amor, evolando-se dos cômoros. Manto nupcial de branca areia, grinalda de estrelas, noiva dissoluta, rosa desfolhada. Faltam as forças a Leonora. No horizonte nasce o sol azul, no abismo do mar desaparece a lua negra, as lágrimas se apagam, acende-se o riso. Ai,
amor, agora, sim, posso morrer.

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