quinta-feira, outubro 08, 2009


TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº 254



Iluminaram-se os olhos de Perpétua, deus o ouça, padre e abençoe as suas palavras. Espera a volta da irmã para uma conversa séria sobre o futuro dos meninos. Tieta não possui herdeiros directos e, entre sobrinhos e enteados, tem obrigação de preferir aqueles em cujas veias corre sangue igual ao seu, sangue dos Esteves. O perigo é a sirigaita da Leonora, Mãezinha para cá, Mãezinha para lá, mais que enteada, quase filha. Não obstante, Perpétua confia no adjutório do Senhor, pagador correcto. Tinham estabelecido um trato, está chegando a hora do senhor cumprir a sua parte.

Terminado o almoço, após dois dedos de prosa, o padre se retira, Ricardo o acompanha. Não mentira quando falara a Tieta em compromissos com o reverendo. Prometera ajudá-lo no inventário dos bens da paróquia, exigido pela Arquidiocese. O Cardeal anda preocupada com sucessivos roubos nas igrejas, desvios de valiosas peças de imaginária, de ricos objectos de culto; em certos casos, com a cumplicidade de padres e sacristãos, segundo murmurações e denúncias. Padre Mariano enrubesce ao recordar a carcomida madeira, a carunchosa imagem de Sant’Ana, vendida, não, trocada por um punhado de cruzeiros com o excomungado pintor, fariseu a fingir-se devoto. Nem por ter empregado toda a importância na Matriz, tostão por tostão, sente-se limpo de culpa.

Na sacristia, padre Mariano que, indiferente ao calor, comeu e bebeu como um padre mestre digno desse nome, aponta as gavetas das cómodas e diz a Ricardo:

- As alfaias estão aí, as velharias na torre. Nossas estimadas e piedosas zeladoras irão retirando e separando as peças, você as anotará nessa folha de papel. Dos outros objectos, já estabeleci a lista. Eu vou terminar a leitura do breviário, em casa, volto daqui a pouco.

Ricardo conhece essa leitura do breviário, na espreguiçadeira: duram cinco minutos. A sesta, porém, pode se prolongar até à hora dos ângelus. Quanto a Vavá Muriçoca, Domingo à tarde, ninguém conta com ele antes da bênção, e olhe lá. Das zeladoras estão presentes três, movimentando-se junto às gavetas: dona Milita, dona Eulina e a sobrinha desta última, Cinira, um pé no barricão, o outro no ar, pronto a se erguer para facilitar. Facilitar, o quê? Ora o quê?

Enquanto as duas velhotas retiram as peças e as separam, Cinira, vendo Ricardo à espera, pergunta-lhe, o olhar dolente, senão quer começar por fazer a relação das velharias acumuladas na torre. Ela pode ajudá-lo. As velharias, segundo a circular da Arquidiocese são os bens mais valiosos, merecem cuidado, atenção e prioridade. Óptima ideia dona Cinira.

- Cinira, só. Não sou nenhuma velha para você me tratar de dona.

- Pois vamos Cinira.

Foram. Ela na frente, ele atrás com papel e lápis. Altos degraus de pedra conduzem à torre. Ricardo admira as coxas fortes de Cinira, revestidas de excitante penugem azulada; retarda cada passo para observar melhor. No depósito, exíguo reduto, mal podem se mover. Curva-se Cinira para recolher uma peça – velhos castiçais, imagens partidas, obulário em desuso – roça em Ricardo. Tocam-se, queiram ou não. A cada movimento encontram-se encostados um ao outro e de repente – Como aconteceu? – viram-se abraçados, as bocas grudadas. Cinira suspira, amolece, Ricardo a sustém. Foi ela que encaminhou a mão do seminarista para as partes; suspende o pé e o pousa sobre o obulário, formando com a perna um ângulo propício. No hábito do armazém de Plínio Xavier, somente quando geme e prende o grito, enfia o braço sob a batina para pedir a bênção ao padre mestre.

Separam-se em silêncio, terminam de estabelecer a pequena lista de objectos em desuso. Na escada ela ainda avança a boca para um beijo de despedida. Assim começou a maratona.

Tendo tempo livre antes do encontro com Maria Imaculada, Ricardo acompanha mãe ao cinema. Um acontecimento, a ida de Perpétua ao cinema sucede de raro em raro, quando o filme é recomendado pelo Santo Ofício, como esse, história de uma freira norte-americana, recentemente canonizada.

Durante o almoço, padre Mariano enfatizara:

- Não percam. Não deixe de ir, dona Perpétua. É um espectáculo digno, uma lição de virtude. Assisti em salvador, em companhia do cónego Barbosa, da Conceição da Praia.

Quando entram, a sala está lotada. Apenas duas cadeiras vagas. Uma ao lado direito de Modesto Pires, habitualmente reservada, na sessão dos sábados para dona Aída. A outra, duas filas atrás, ao lado esquerdo de Carol – à sua direita senta-se a empregada, cão de guarda – permanece quase sempre desocupada. Nenhuma mulher digna de respeito a ocupará jamais; os homens bem gostariam de fazê-lo mas cadê coragem para enfrentar o desagrado do ricalhaço e o falatório do povo?

Site Meter