TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº 259
DO ASFALTO SOBRE OS CARANGUEJOS
Ricardo faltara-lhe no momento em que mais precisava de arrimo e consolo, quando o triunfo teve sabor de desastre e tudo pareceu perdido. Somente na voracidade e na ternura do adolescente Tieta poderia ter encontrado conforto para a decepção do dia frustrado, domingo de desapontos e malogros – a sombra da Brastânio projectou-se sobre a inauguração do Curral do Bode Inácio e a poluiu.
A morte de Zé Esteves reduzira a planejada festa de arromba a discreta comemoração, almoço de poucos convidados, os íntimos, banho de mar e prosa amena. Nem por isso Tieta a desejou e previu menos grata e exaltante. Após os dias de tormenta, o sol iluminou o esplendor de Mangue seco, jamais esteve a paisagem tão bela, o ar tão puro, a paz tão completa. Durante todos aqueles anos de exílio, Tieta sonhara possuir nas dunas de Mangue Seco pequeno chão de casa, nele erguer cabana onde repousar. A morte de Felipe apressara o projecto. Viera aflita em busca dos seus começos, ao reencontro da pastora de cabras, da adolescente árdua e feliz. Em menos de dois meses recorrera todos os caminhos e atalhos, não faltando a boa briga ao lado dos pescadores, a travessia dos tubarões, face a face com a morte, o ranger de dentes e os ais de amor na exaltação das noites de cio, empernada sobre os cômoros. Não somente erguera a almejada biboca como o fizera cumulada de ternura e gozo, amassando barro, areia e carícias a quatro mãos. A festa de inauguração do Curral do Bode Inácio – marco de êxito da viagem, do vitorioso retorno da pequena pastora amaldiçoada e expulsa, signo de paz reconquistada – ela a deseja perfeita de alegria pura e simples, o dia no calor da amizade, a noite no fogo da paixão.
Alegria bem pouca existiu, a amizade viu-se sujeita a duras provas e a noite foi de ausência. Contentes como devido, apenas Leonora e Astério.
Ao regressar dos cômoros, exultante, Leonora caíra nos braços de Tieta rindo e chorando:
- Quer ver uma pessoa feliz, Mãezinha? Olhe para mim…Segui o seu conselho… Se morresse hoje não me importava.
- Não seja tola. Como é que Barbozinha diz? De amor não se morre, se vive. Volte com Ascânio para Agreste, aproveite as últimas noites. Na beira do rio tem uns recantos de primeira, mas tome cuidado. Não esqueça que sou uma viúva honesta e você, uma filha de família. Aproveite o mais que puder, cabrita, faça sua reserva de saudade. Tu não sabe quanto é bom sentir saudade. É disso que tu precisa.
Leonora continuou exultante Domingo afora porque, quando Ascânio retirou o desenho de Rufo do tubo de metal para expô-lo sobre a mesa, ela ainda dormia e não tomou conhecimento da discussão com Tieta.
Também Ascânio deitara-se eufórico na rede armada na varanda para Ricardo. Tardara a adormecer, reflectindo sobre o sucedido nos cômoros. A certeza de ser amado pela mais bela e perfeita das mulheres fazia-o sentir-se invencível, capaz de conquistar o mundo. Para colocá-lo aos pés de Leonora. Acordou com o nascer do sol, correu para a praia, nadou, rindo sozinho. Na povoação procurou notícias da equipe de técnicos que, segundo anunciara doutor Lucena, teria vindo para Mangue Seco há alguns dias. Equipe numerosa, não podia passar despercebida. Não obteve, porém, nenhuma informação. Jonas, pintando cachimbo de barro, apontou para o mar com o cotoco do braço:
- Fez um tempo de cão. Por aqui não arribou ninguém. Ou perderam o rumo ou arrepiaram carreira.
- Talvez estejam no arraial.
- Capaz.
Ao voltar, avista Tieta à porta do Curral. Conta obter a boa vontade da madrasta de Leonora para os seus projectos matrimoniais ao inaugurar a placa da rua Antonieta Esteves Cantarelli, em breve. Mas a adesão da milionária à causa da Brastânio, ele pode obtê-la hoje mesmo, naquela manhã, naquela hora, fazendo-a admirar a obra de arte do decorador Rufo. Habitando em São Paulo a viúva do industrial, possuindo ela própria acções de fábricas, dona Antonieta será certamente sensível àquela deslumbrante visão do futuro, como mais uma vez classifica o chamativo desenho a cores. Apoio fundamental, o da madrasta de Leonora. Arrastará toda a população, dona Carmosina e o Comandante ficarão falando sozinhos. Quanto ao vate Barbozinha, quem dá atenção aos poetas? Recebe um choque com a inesperada reacção de Tieta:
- Como você se atreve a me mostrar essa porcaria no dia em que estou inaugurando minha biboca em Mangue Seco? Projectos e desenhos só servem para enganar os trouxas – Percorre com a vista o panorama de edifícios, chaminés, casas e estradas – Que horror! Se você gosta mesmo de Agreste, como eu penso, Ascânio, largue esse troço de mão, dê graças a Deus pelo que temos, parece pouco mas é muito.
- Me admira que a senhora diga isso, a senhora que obteve a ligação da luz da Hidrelétrica…
- Luz é uma coisa, poluição é outra. Você é inteligente, sabe que se essa indústria arranjasse outro lugar onde se instalar, não viria para esses confins.
EPISÓDIO Nº 259
DO ASFALTO SOBRE OS CARANGUEJOS
Ricardo faltara-lhe no momento em que mais precisava de arrimo e consolo, quando o triunfo teve sabor de desastre e tudo pareceu perdido. Somente na voracidade e na ternura do adolescente Tieta poderia ter encontrado conforto para a decepção do dia frustrado, domingo de desapontos e malogros – a sombra da Brastânio projectou-se sobre a inauguração do Curral do Bode Inácio e a poluiu.
A morte de Zé Esteves reduzira a planejada festa de arromba a discreta comemoração, almoço de poucos convidados, os íntimos, banho de mar e prosa amena. Nem por isso Tieta a desejou e previu menos grata e exaltante. Após os dias de tormenta, o sol iluminou o esplendor de Mangue seco, jamais esteve a paisagem tão bela, o ar tão puro, a paz tão completa. Durante todos aqueles anos de exílio, Tieta sonhara possuir nas dunas de Mangue Seco pequeno chão de casa, nele erguer cabana onde repousar. A morte de Felipe apressara o projecto. Viera aflita em busca dos seus começos, ao reencontro da pastora de cabras, da adolescente árdua e feliz. Em menos de dois meses recorrera todos os caminhos e atalhos, não faltando a boa briga ao lado dos pescadores, a travessia dos tubarões, face a face com a morte, o ranger de dentes e os ais de amor na exaltação das noites de cio, empernada sobre os cômoros. Não somente erguera a almejada biboca como o fizera cumulada de ternura e gozo, amassando barro, areia e carícias a quatro mãos. A festa de inauguração do Curral do Bode Inácio – marco de êxito da viagem, do vitorioso retorno da pequena pastora amaldiçoada e expulsa, signo de paz reconquistada – ela a deseja perfeita de alegria pura e simples, o dia no calor da amizade, a noite no fogo da paixão.
Alegria bem pouca existiu, a amizade viu-se sujeita a duras provas e a noite foi de ausência. Contentes como devido, apenas Leonora e Astério.
Ao regressar dos cômoros, exultante, Leonora caíra nos braços de Tieta rindo e chorando:
- Quer ver uma pessoa feliz, Mãezinha? Olhe para mim…Segui o seu conselho… Se morresse hoje não me importava.
- Não seja tola. Como é que Barbozinha diz? De amor não se morre, se vive. Volte com Ascânio para Agreste, aproveite as últimas noites. Na beira do rio tem uns recantos de primeira, mas tome cuidado. Não esqueça que sou uma viúva honesta e você, uma filha de família. Aproveite o mais que puder, cabrita, faça sua reserva de saudade. Tu não sabe quanto é bom sentir saudade. É disso que tu precisa.
Leonora continuou exultante Domingo afora porque, quando Ascânio retirou o desenho de Rufo do tubo de metal para expô-lo sobre a mesa, ela ainda dormia e não tomou conhecimento da discussão com Tieta.
Também Ascânio deitara-se eufórico na rede armada na varanda para Ricardo. Tardara a adormecer, reflectindo sobre o sucedido nos cômoros. A certeza de ser amado pela mais bela e perfeita das mulheres fazia-o sentir-se invencível, capaz de conquistar o mundo. Para colocá-lo aos pés de Leonora. Acordou com o nascer do sol, correu para a praia, nadou, rindo sozinho. Na povoação procurou notícias da equipe de técnicos que, segundo anunciara doutor Lucena, teria vindo para Mangue Seco há alguns dias. Equipe numerosa, não podia passar despercebida. Não obteve, porém, nenhuma informação. Jonas, pintando cachimbo de barro, apontou para o mar com o cotoco do braço:
- Fez um tempo de cão. Por aqui não arribou ninguém. Ou perderam o rumo ou arrepiaram carreira.
- Talvez estejam no arraial.
- Capaz.
Ao voltar, avista Tieta à porta do Curral. Conta obter a boa vontade da madrasta de Leonora para os seus projectos matrimoniais ao inaugurar a placa da rua Antonieta Esteves Cantarelli, em breve. Mas a adesão da milionária à causa da Brastânio, ele pode obtê-la hoje mesmo, naquela manhã, naquela hora, fazendo-a admirar a obra de arte do decorador Rufo. Habitando em São Paulo a viúva do industrial, possuindo ela própria acções de fábricas, dona Antonieta será certamente sensível àquela deslumbrante visão do futuro, como mais uma vez classifica o chamativo desenho a cores. Apoio fundamental, o da madrasta de Leonora. Arrastará toda a população, dona Carmosina e o Comandante ficarão falando sozinhos. Quanto ao vate Barbozinha, quem dá atenção aos poetas? Recebe um choque com a inesperada reacção de Tieta:
- Como você se atreve a me mostrar essa porcaria no dia em que estou inaugurando minha biboca em Mangue Seco? Projectos e desenhos só servem para enganar os trouxas – Percorre com a vista o panorama de edifícios, chaminés, casas e estradas – Que horror! Se você gosta mesmo de Agreste, como eu penso, Ascânio, largue esse troço de mão, dê graças a Deus pelo que temos, parece pouco mas é muito.
- Me admira que a senhora diga isso, a senhora que obteve a ligação da luz da Hidrelétrica…
- Luz é uma coisa, poluição é outra. Você é inteligente, sabe que se essa indústria arranjasse outro lugar onde se instalar, não viria para esses confins.
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