TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº 267
DOS MELINDRES DE CONSCIÊNCIA (CONSTRANGEDORES E IMPROCEDENTES)
Ao ouvir mestre Colombo, apossa-se de Ascânio sensação idêntica à que sentira na Bahia, na semana anterior. Importuno constrangimento, como se não marchasse pelos próprios pés, fosse conduzido, colocado diante de factos consumados, sem opção, devendo executar decisões tomadas por outros, à sua revelia. Contudo, a vontade de opor-se, de exigir explicações, de não se deixar envolver, de tirar a limpo o porquê de cada coisa, não chega a se expressar. Sente-se desconfortável mas ouve e cala.
Constata mais uma vez o poderio da Brastânio, ao receber na Prefeitura de Agreste o egrégio professor Hélio Colombo, do qual não chegara a ser aluno, mas em cujo escritório, igual aos demais colegas, sonhara iniciar-se quando formado. Ali estava o mestre, em pessoa, refeito após o almoço e a sesta, expondo e solucionando o terrível problema do coqueiral que tanta preocupação causara a Ascânio. Portador de auspiciosa notícia, a decisão do Tribunal sobre a data do pleito, antes mesmo que o moço terminasse de lhe dizer quanto o admirava, o eminente advogado começou a colocar em pratos limpos a confusão causada por Fidélio, a ditar o procedimento de Ascânio.
Empunhando o tubo de metal e a pasta de couro, no bolso o anel de compromisso, o peito inflado de ambição e amor, Ascânio saltara vitorioso da marinete de Jairo. A decisão da Companhia Brasileira de Titânio, escolhendo Sant’Ana do Agreste para ali instalar suas fábricas, mudava a face do município e a vida do futuro prefeito. Com os argumentos do doutor Lucena e o feérico desenho de Rufo, contava conquistar a boa vontade da madrasta de Leonora. Sobrariam apenas os discursos do Comandante, as objurgatórias de dona Carmosina, os versos, na maioria inéditos de Barbozinha. Palavrório ruidoso e inconsequente.
A euforia durou pouco. Em Mangue Seco, a firme negativa de Tieta foi um rude golpe. Depois, os motivos de apreensão a aborrecimentos se sucederam: obstáculos e injustiças, incertezas e mágoas.
Na agência dos Correios, dona Carmosina atirara-lhe nas fuças a opção concedida por Fidélio ao Comandante, vingando-se do “conheceu, papuda?” com que ele se despedira ao embarcar no jip. Escarnecendo:
- Quero ver como seus amigos vão fazer para instalar a fábrica no coqueiral. Felizmente, ainda há gente direita neste mundo.
Ascânio não respondeu, deixou dona Carmosina falando sozinha, queria evitar as discussões, capazes de levar a um rompimento com a velha amiga cada vez mais exaltada. Mas a informação, logo confirmada, demonstrava que nem tudo era palavrório. Não conseguiu resposta para a pergunta da agente dos Correios: como iria a Brastânio adquirir as terras do coqueiral? Questões de propriedade de terra costumam arrastar-se, intermináveis, nos tribunais, duram anos e anos, essa apenas se inicia: o juiz de Esplanada nem sequer dera seguimento ao mandato de posse, requerido pelo doutor Marcolino, em nome de Jarde e Josafá Antunes.
Doutor Hélio Colombo remove o obstáculo e declara que para encontrar a boa solução não teria sido necessário empreender aquela pavorosa viagem, amenizada apenas pelo almoço com que o tabelião o homenageara – o mestre ainda lambe os beiços. Na sala Bonaparte ressona no torpor da tarde, arriado num banco. Ao lado, as certidões e uma lata de doce de araça, presente para o mestre. Doutor Colombo fita com simpatia o dorminhoco: soneca merecida, o jovem sacrificara a sesta para aprontar as certidões. Palerma, porém gentil. Ordena a Ascânio:
- Guarde reserva acerca desta nossa conversa. Mirko disse-me que posso confiar no senhor.
Solução simples, perfeita. Ascânio apenas eleito empossado, desapropriará toda a área do coqueiral, medida de utilidade pública. Onde arranjar dinheiro para pagar a desapropriação? Os terrenos desapropriados sertão vendidos à Brastânio. A Prefeitura terá dinheiro para pagar e ainda encaixará algum, obtendo lucro na transacção. Negócio limpo.
- E se os herdeiros não aceitarem?
- Como não vão aceitar? Ainda nem existem como herdeiros. A desapropriação, a preço razoável, é um verdadeiro presente para eles.
- Mas o Comandante, esse não aceitará, por nenhum preço.
- Ele não tem como impedir a desapropriação por motivo de utilidade pública. Pode ir à justiça, depois, perderá tempo e dinheiro. Não se preocupe com ele, vá em frente. Eu cuidarei de tudo. Por ocasião da sua posse, mandarei em mão por um colega, um dos meus auxiliares no escritório, o decreto de desapropriação redigido, com os considerandos, toda a fundamentação. Seu único trabalho será assinar.
Seu único trabalho: assinar. Sensação desagradável, incómoda. Mete a mão no bolso, toca a pequena caixa onde está o anel de compromisso. Quando o colocará no dedo de Leonora? O tempo urge. Que pode fazer senão ir em frente? Ademais, colaborando para a instalação da Brastânio em Mangue Seco está apenas servindo os interesses do município e do povo. Pensando bem, onde os motivos para melindres de consciência.
EPISÓDIO Nº 267
DOS MELINDRES DE CONSCIÊNCIA (CONSTRANGEDORES E IMPROCEDENTES)
Ao ouvir mestre Colombo, apossa-se de Ascânio sensação idêntica à que sentira na Bahia, na semana anterior. Importuno constrangimento, como se não marchasse pelos próprios pés, fosse conduzido, colocado diante de factos consumados, sem opção, devendo executar decisões tomadas por outros, à sua revelia. Contudo, a vontade de opor-se, de exigir explicações, de não se deixar envolver, de tirar a limpo o porquê de cada coisa, não chega a se expressar. Sente-se desconfortável mas ouve e cala.
Constata mais uma vez o poderio da Brastânio, ao receber na Prefeitura de Agreste o egrégio professor Hélio Colombo, do qual não chegara a ser aluno, mas em cujo escritório, igual aos demais colegas, sonhara iniciar-se quando formado. Ali estava o mestre, em pessoa, refeito após o almoço e a sesta, expondo e solucionando o terrível problema do coqueiral que tanta preocupação causara a Ascânio. Portador de auspiciosa notícia, a decisão do Tribunal sobre a data do pleito, antes mesmo que o moço terminasse de lhe dizer quanto o admirava, o eminente advogado começou a colocar em pratos limpos a confusão causada por Fidélio, a ditar o procedimento de Ascânio.
Empunhando o tubo de metal e a pasta de couro, no bolso o anel de compromisso, o peito inflado de ambição e amor, Ascânio saltara vitorioso da marinete de Jairo. A decisão da Companhia Brasileira de Titânio, escolhendo Sant’Ana do Agreste para ali instalar suas fábricas, mudava a face do município e a vida do futuro prefeito. Com os argumentos do doutor Lucena e o feérico desenho de Rufo, contava conquistar a boa vontade da madrasta de Leonora. Sobrariam apenas os discursos do Comandante, as objurgatórias de dona Carmosina, os versos, na maioria inéditos de Barbozinha. Palavrório ruidoso e inconsequente.
A euforia durou pouco. Em Mangue Seco, a firme negativa de Tieta foi um rude golpe. Depois, os motivos de apreensão a aborrecimentos se sucederam: obstáculos e injustiças, incertezas e mágoas.
Na agência dos Correios, dona Carmosina atirara-lhe nas fuças a opção concedida por Fidélio ao Comandante, vingando-se do “conheceu, papuda?” com que ele se despedira ao embarcar no jip. Escarnecendo:
- Quero ver como seus amigos vão fazer para instalar a fábrica no coqueiral. Felizmente, ainda há gente direita neste mundo.
Ascânio não respondeu, deixou dona Carmosina falando sozinha, queria evitar as discussões, capazes de levar a um rompimento com a velha amiga cada vez mais exaltada. Mas a informação, logo confirmada, demonstrava que nem tudo era palavrório. Não conseguiu resposta para a pergunta da agente dos Correios: como iria a Brastânio adquirir as terras do coqueiral? Questões de propriedade de terra costumam arrastar-se, intermináveis, nos tribunais, duram anos e anos, essa apenas se inicia: o juiz de Esplanada nem sequer dera seguimento ao mandato de posse, requerido pelo doutor Marcolino, em nome de Jarde e Josafá Antunes.
Doutor Hélio Colombo remove o obstáculo e declara que para encontrar a boa solução não teria sido necessário empreender aquela pavorosa viagem, amenizada apenas pelo almoço com que o tabelião o homenageara – o mestre ainda lambe os beiços. Na sala Bonaparte ressona no torpor da tarde, arriado num banco. Ao lado, as certidões e uma lata de doce de araça, presente para o mestre. Doutor Colombo fita com simpatia o dorminhoco: soneca merecida, o jovem sacrificara a sesta para aprontar as certidões. Palerma, porém gentil. Ordena a Ascânio:
- Guarde reserva acerca desta nossa conversa. Mirko disse-me que posso confiar no senhor.
Solução simples, perfeita. Ascânio apenas eleito empossado, desapropriará toda a área do coqueiral, medida de utilidade pública. Onde arranjar dinheiro para pagar a desapropriação? Os terrenos desapropriados sertão vendidos à Brastânio. A Prefeitura terá dinheiro para pagar e ainda encaixará algum, obtendo lucro na transacção. Negócio limpo.
- E se os herdeiros não aceitarem?
- Como não vão aceitar? Ainda nem existem como herdeiros. A desapropriação, a preço razoável, é um verdadeiro presente para eles.
- Mas o Comandante, esse não aceitará, por nenhum preço.
- Ele não tem como impedir a desapropriação por motivo de utilidade pública. Pode ir à justiça, depois, perderá tempo e dinheiro. Não se preocupe com ele, vá em frente. Eu cuidarei de tudo. Por ocasião da sua posse, mandarei em mão por um colega, um dos meus auxiliares no escritório, o decreto de desapropriação redigido, com os considerandos, toda a fundamentação. Seu único trabalho será assinar.
Seu único trabalho: assinar. Sensação desagradável, incómoda. Mete a mão no bolso, toca a pequena caixa onde está o anel de compromisso. Quando o colocará no dedo de Leonora? O tempo urge. Que pode fazer senão ir em frente? Ademais, colaborando para a instalação da Brastânio em Mangue Seco está apenas servindo os interesses do município e do povo. Pensando bem, onde os motivos para melindres de consciência.
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