quinta-feira, dezembro 24, 2009


DONA FLOR


E SEUS DOIS


MARIDOS

EPISÓDIO Nº 2


Foi um reboliço no bloco e na rua, um corre-corre pelas redondezas, um deus-nos-acuda a sacudir os carnavalescos – e ainda por cima a escandalosa Anete, professorinha romântica e histérica, aproveitou a boa oportunidade de para um chilique, com pequenos gritos agudos e ameaças de desmaio. Toda aquela representação em honra do dengoso Carlinhos Mascarenhas por quem suspirava a melindrosa de faniquito fácil – dizendo-se ela própria ultra-sensível, arrepiando-se como uma gata quando ele dedilhava o cavaquinho.

Cavaquinho agora silencioso, pendendo inútil das mãos do artista, como se Vadinho houvesse levado consigo para o outro mundo seus derradeiros acordes.

Veio gente correndo de todos os lados, logo a notícia circulou pelas imediações, chegou a São Pedro, à Avenida Sete, ao Campo Grande, arrebanhando curiosos. Em torno ao cadáver reunia-se uma pequena multidão a acotovelar-se em comentários. Um médico residente no Sodré foi requisitado e um guarda-de-trânsito. Sacou de um apito e nele soprava sem parar, como a advertir a cidade inteira, a todo o Carnaval, do fim do Vadinho.

“Pois se é Vadinho, coitadinho dele!” constatou um careta, com sua máscara de meia, perdida a animação. Todos reconheciam o morto, era largamente popular, com sua alegria esfuziante, seu bigodinho recortado, sua altivez de malandro, benquisto sobretudo nos lugares onde se bebia, jogava a farreava; e ali tão perto de sua residência não havia quem não o identificasse.

Outro mascarado, este vestido de aniagem e coberto com uma cabeçorra de urso, varou o cercado grupo, conseguiu aproximar-se e ver. Arrancou a máscara deixando exposta uma cara aflita, de bigodes caídos e crânio careca e murmurou:

- Vadinho, meu irmãozinho, que foi que te fizeram?

“Que foi que deu nele, de que morreu? Perguntavam-se uns aos outros e havia quem respondesse: “foi cachaça”, numa explicação por demais fácil para tão inesperada morte. Uma velha curvada parou também, deu sua olhadela, constatou:

- Tão moderno ainda, por que morrer tão moço?

Perguntas e respostas cruzavam-se, enquanto o médico colocava o ouvido sobre o peito de Vadinho, numa constatação final e inútil.

“Estava sambando numa animação retada, e sem avisar nada a ninguém caiu de lado já todo cheio de morte” – explicou um dos quatro amigos, curado por completo da cachaça, de súbito sóbrio e comovido, meio sem jeito nas roupas femininas de baiana, as faces vermelhas de carmim, fundas olheiras negras, traçadas com cortiça queimada, sob os olhos.

O facto de estarem fantasiados de baiana não deve levar a maliciar-se dos cinco rapazes, todos eles de macheza comprovada. Vestiam-se de baiana para melhor brincar, por farsa e molecagem, e não por tendência ao efeminado, a suspeitas esquisitices. Não havia xibungo entre eles, benza Deus. Vadinho, inclusive, amarrara, sob a anágua branca e engomada, enorme raiz de mandioca e, a cada passo, suspendia as saias e exibia o troféu descomunal e pornográfico, fazendo as mulheres esconderem nas mãos o rosto e o riso, com maliciosa vergonha. Agora a raiz pendia abandonada sobre a coxa descoberta e não fazia ninguém rir. Um dos amigos veio e a desatou da cintura de Vadinho. Mas nem assim o defunto ficou decente e recatado, era um morto de Carnaval e não exibia sequer sangue de baba ou de facada a escorrer-lhe do peito, capaz de
resgatar seu
ar de mascarado.

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