DONA
FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 15
Enquanto isto, o artista Cravo e outros materialistas grosseiros aproveitavam-se da semi-obscuridade reinante na sala – a luz velada para assim, na meia sombra, melhor ouvir-se e sentir-se a poesia – e, sem respeitar o ambiente de tão alta espiritualidade, de tão excelsos sentimentos, bolinavam descaradamente as raparigas, tratando de obter-lhes favores gratuitos, lesando a caixa do castelo, uns calhordas.
Os saraus terminavam sempre decaindo da poesia para a anedota pornográfica, no fim da noite. Brilhavam então, Vadinho, Giovanni, Mirandão, Carlinhos Mascarenhas e, sobretudo Lev, arquitecto em começo de carreira, filho de imigrantes, um galalau comprido como uma girafa, dono de inesgotável reportório, bom narrador. Carregava um sobrenome russo impronunciável, as raparigas haviam-no apelidado de Lev Língua de Prata, devido talvez às anedotas. Talvez.
Num desses “elegantes encontros da inteligência e da sensibilidade”, declamou Robato, com sua voz trémula, a elegia à morte de Vadinho, introduzindo-a com algumas palavras comovidas sobre o desaparecido, amigo de todos os frequentadores daquele “delicioso antro da poesia e do amor”. Referiu-se de passagem ao facto de ter o autor preferido “as névoas do anonimato ao sol da publicidade e da glória.
Ele, Robato, recebera cópia do poema das mãos de um oficial da Polícia Militar, capitão Crisóstomo, também fraterno amigo de Vadinho. Não soubera, no entanto, o militar dar-lhe informação precisa sobre a identidade do poeta.
Muitos atribuíram os versos ao próprio Robato, mas, ante sua recusa sistemática em aceitá-los, andaram apontando como autor quanto poeta versejava na cidade, especialmente aqueles de condição nocturna e de boémia conhecida.
Houve, porém, quem jamais acreditasse nas negativas de Robato, levando-as à conta de modéstia, e persistiram em seu nome. Ainda hoje há quem pense serem de sua lavra as estrofes da elegia.
O debate azedou-se a ponto de, em certa ocasião, romper os limites da literatura e da civilidade e descambar num conflito a bofetões, quando o poeta Clóvis Amorim, língua viperina solta numa boca de epigramas, a mamar permanentemente o fedorento charuto do Mercado Modelo, negou ao bardo Hermes Clímaco qualquer possibilidade de ser autor dos debatidos versos, faltando-lhe para tanto génio e gramática.
- De Clímaco? Não diga besteira… Aquele, com muito esforço, obra uma quadrinha em sete sílabas. Um poeta endefluxado…
Por cúmulo do azar, o poeta Clímaco surgia na porta do botequim, com seu eterno traje negro, a capa de borracha e o guarda-chuva, também eternos. Levantou o guarda-chuva e arremeteu, em cólera:
- Endefluxado é a puta que o pariu…
Atracaram-se, entre xingos e sopapos, com vantagens evidentes para o Amorim, melhor versejador e atleta mais robusto.
Curioso também e digno de relato o sucedido com um fulano, autor de dois magros cadernos de versos, a quem a algumas pessoas menos avisadas conferiram a autoria do poema. Primeiro ele a negou com firmeza; depois, como perseverassem, foi menos pertinaz em suas negativas e, por fim, reagia de maneira tão confusa e tímida que a negativa parecia acanhada afirmação.
“É dele, não há dúvida, diziam, ao vê-lo esfregar as mãos, baixando os olhos, a sorrir num murmúrio:
- Que parecem versos meus, isso parecem. Mas, não são…
Negou sempre, mas, ao mesmo tempo, não admitiu jamais atribuíssem a outrem as discutidas estrofes. Se o faziam, desdobrava-se a provar a impossibilidade de tal hipótese. E se algum obstinado persistisse a argumentar, resmungava definitivo e misterioso:
- Ora, quer dizer a mim?...Tenho razões para saber…
E, quando a ouvia declamar, acompanhava atentamente o recitativo, corrigindo-o se alguma palavra era trocada, ciumento do poema, Zeloso como de obra sua. Só mais tarde, com a revelação do nome do verdadeiro autor, veio ele a despir-se da glória indevida. Passou então, e imediatamente, a dizer horrores da elegia, negando-lhe qualquer mérito ou beleza – “poesia prostibular e estercorária"
Enquanto isto, o artista Cravo e outros materialistas grosseiros aproveitavam-se da semi-obscuridade reinante na sala – a luz velada para assim, na meia sombra, melhor ouvir-se e sentir-se a poesia – e, sem respeitar o ambiente de tão alta espiritualidade, de tão excelsos sentimentos, bolinavam descaradamente as raparigas, tratando de obter-lhes favores gratuitos, lesando a caixa do castelo, uns calhordas.
Os saraus terminavam sempre decaindo da poesia para a anedota pornográfica, no fim da noite. Brilhavam então, Vadinho, Giovanni, Mirandão, Carlinhos Mascarenhas e, sobretudo Lev, arquitecto em começo de carreira, filho de imigrantes, um galalau comprido como uma girafa, dono de inesgotável reportório, bom narrador. Carregava um sobrenome russo impronunciável, as raparigas haviam-no apelidado de Lev Língua de Prata, devido talvez às anedotas. Talvez.
Num desses “elegantes encontros da inteligência e da sensibilidade”, declamou Robato, com sua voz trémula, a elegia à morte de Vadinho, introduzindo-a com algumas palavras comovidas sobre o desaparecido, amigo de todos os frequentadores daquele “delicioso antro da poesia e do amor”. Referiu-se de passagem ao facto de ter o autor preferido “as névoas do anonimato ao sol da publicidade e da glória.
Ele, Robato, recebera cópia do poema das mãos de um oficial da Polícia Militar, capitão Crisóstomo, também fraterno amigo de Vadinho. Não soubera, no entanto, o militar dar-lhe informação precisa sobre a identidade do poeta.
Muitos atribuíram os versos ao próprio Robato, mas, ante sua recusa sistemática em aceitá-los, andaram apontando como autor quanto poeta versejava na cidade, especialmente aqueles de condição nocturna e de boémia conhecida.
Houve, porém, quem jamais acreditasse nas negativas de Robato, levando-as à conta de modéstia, e persistiram em seu nome. Ainda hoje há quem pense serem de sua lavra as estrofes da elegia.
O debate azedou-se a ponto de, em certa ocasião, romper os limites da literatura e da civilidade e descambar num conflito a bofetões, quando o poeta Clóvis Amorim, língua viperina solta numa boca de epigramas, a mamar permanentemente o fedorento charuto do Mercado Modelo, negou ao bardo Hermes Clímaco qualquer possibilidade de ser autor dos debatidos versos, faltando-lhe para tanto génio e gramática.
- De Clímaco? Não diga besteira… Aquele, com muito esforço, obra uma quadrinha em sete sílabas. Um poeta endefluxado…
Por cúmulo do azar, o poeta Clímaco surgia na porta do botequim, com seu eterno traje negro, a capa de borracha e o guarda-chuva, também eternos. Levantou o guarda-chuva e arremeteu, em cólera:
- Endefluxado é a puta que o pariu…
Atracaram-se, entre xingos e sopapos, com vantagens evidentes para o Amorim, melhor versejador e atleta mais robusto.
Curioso também e digno de relato o sucedido com um fulano, autor de dois magros cadernos de versos, a quem a algumas pessoas menos avisadas conferiram a autoria do poema. Primeiro ele a negou com firmeza; depois, como perseverassem, foi menos pertinaz em suas negativas e, por fim, reagia de maneira tão confusa e tímida que a negativa parecia acanhada afirmação.
“É dele, não há dúvida, diziam, ao vê-lo esfregar as mãos, baixando os olhos, a sorrir num murmúrio:
- Que parecem versos meus, isso parecem. Mas, não são…
Negou sempre, mas, ao mesmo tempo, não admitiu jamais atribuíssem a outrem as discutidas estrofes. Se o faziam, desdobrava-se a provar a impossibilidade de tal hipótese. E se algum obstinado persistisse a argumentar, resmungava definitivo e misterioso:
- Ora, quer dizer a mim?...Tenho razões para saber…
E, quando a ouvia declamar, acompanhava atentamente o recitativo, corrigindo-o se alguma palavra era trocada, ciumento do poema, Zeloso como de obra sua. Só mais tarde, com a revelação do nome do verdadeiro autor, veio ele a despir-se da glória indevida. Passou então, e imediatamente, a dizer horrores da elegia, negando-lhe qualquer mérito ou beleza – “poesia prostibular e estercorária"
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