sábado, janeiro 16, 2010


DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 20





Olhe quem está aí: minha santa sogrinha, minha segunda mãe, esse coração de ouro, essa pomba sem fel. E a linguinha, como vai, bem afiada?

Sente aqui, minha santa, junto do seu genrinho querido; vamos vasculhar o lixo da Bahia…

E ria, aquela sua risada de homem de homem ladino e satisfeito com a vida: se tanto título a vencer e tanta dívida espalhada, tanta apertura de dinheiro e tanta urgência de numerário para as apostas não conseguiam entristecê-lo nem exasperá-lo, como poderia dona Rozilda alimentar esperanças? Por isso o odiava, e pelo que ele lhe fizera nos primeiros tempos do namoro.

Numa rabanada raivosa abandonava o campo de batalha, atingida pelo riso de Vadinho, ia vingar-se em dona Flor, acusando-a rua afora, em agitados comícios:

- Nunca mais ponho os pés nesta casa, filha amaldiçoada! Fique com o cachorro de seu marido, deixe que ele insulte sua mãe, esqueça o leite que mamou…vou embora antes que ele me bata…Não sou igual a você que gosta de apanhar…

Com a risada de Vadinho a persegui-la pelas esquinas, estourando nos becos, gaitada de mofa – dona Rozilda perdia a cabeça. Uma vez a perdeu por completo; esquecida de sua condição de senhora viúva e recatada, deteve-se na rua cheia de gente e, voltando-se para a janela onde o genro se torcia rir, descascou-lhe, com o braço nu, uma penca, senão todo um cacho de bananas. Acompanhava o gesto grosseiro com pragas e insultos, a voz estrangulada.

- Tome, seu sujo, seu indecente, tome e meta…

Escandalizavam-se os passantes, o grave professor Epaminondas, a pulcra dona Gisa:

- Mulher mais sem compostura… - criticava o professor.

- É uma histérica… - definia a professora.

Apesar de bem conhecer dona Rozilda, testemunha que fora daquele e de outros furores, familiar de seu carácter difícil, de seu congénito azedume, ainda assim, na fila do Elevador, tornava dona Norma a surpreender-se. Nunca imaginara pudesse perdurar a quezília entre a sogra e o genro mais além da morte, não concedendo dona Rozilda ao finado sequer uma palavra de lamentação, mesmo vazia de sentimento, puramente formal, da boca para fora. Nem isso:

- Até o ar que se respira aqui ficou mais leve depois que o desgraçado esticou a canela…

Dona Norma não pôde conter-se:

- Puxa! A senhora tem mesmo raiva de Vadinho, hein?

- Oxente! E não era para ter? Um vagabundo sem eira nem beira, pau d’água, jogador, não valia de nada…E se meteu na minha família, virou a cabeça de minha filha, tirou a desinfeliz de casa para viver às custas dela…

Jogador, cachaceiro, vagabundo, mau marido, era tudo verdade, considerou, pensativa, dona Norma. Como odiar, no entanto, mais além da morte?

Não se deve, no carrego de defuntos, varrer e enterrar os ressentimentos e as discórdias? Não era essa a opinião de dona Rozilda:

- Me chamava de velha xereta, nunca me respeitou, ria nas minhas bochechas…Me enganou quando me conheceu, me fez de boba, me arrastou na rua da amargura…Por que hei-de me
esquecer, só porque está morto no cemitério? Só por isso?

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