DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS
Tão lorde ficara seu Rosalvo a ponto de, certo dia, indo pela Rua Chile, não reconhecer dona Rozilda e quase a atropelar, quando ela, pedestre e amável, atirou-se na frente do carro na ânsia de cumprimentar o próspero colega do marido. Não só o sujeito lhe metera um susto medonho com o ruído da busina desatada como ainda a xingara, gritando-lhe desaforos:
- Quer morrer piolho de cobra?
Em três ou quatro anos, com produtos farmacêuticos, lábia e simpatia, esse grosseirão obtivera automóvel, era sócio do Bahiano de Ténis, íntimo de políticos e ricaços, um fidalgo, meus senhores, cheio de empáfia, o rei na barriga! Dona Rozilda rangia os dentes, e o toleirão do Gil?
Ah!, Gil vegetava a pé ou de bonde, com suas amostras de atilhos, suspensórios, colarinhos e punhos duros, especialista em produtos fora de moda, reduzido a uma pequena freguesia de lojas suburbanas, de antiquados armarinhos. Não saía disso, marcando passo a vida inteira. Ninguém acreditava na sua capacidade, nem ele próprio.
Um dia cansou-se de tanta queixa e reclamação de tanto se esforçar sem resultado nem alegria. Porto, cunhado de sua mulher, marido de Lita, irmã de Rozilda, dava ele também um murro safado para viver, ensinando desenho e matemática a rapazes num estabelecimento estadual para artesãos, nas lonjuras de Paripe. De trem, todos os dias, de manhã cedinho, levantando-se com o sol, regressando ao fim da tarde. Mas aos domingos, saía pelas ruas da cidade e com uma caixa de tintas e pincéis a pintar coloridos casarios e tirava daquela ocupação tanta alegria a ponto de jamais ter sido visto de mau humor ou melancólico. Também casara-se com Lita e não com Rozilda, e Lita, o oposto da irmã, era uma santa mulher, cuja boca jamais se abrira para falar mal de vivente ou criatura.
Gil nem mesmo no jogo de damas ou do gamão obtinha progressos, e Antenor Lima só o aceitava de parceiro quando outro mais forte não aparecia; quanto a seu Zeca Serra, campeão da Ladeira, nem assim, nem para matar o tempo – não tinha graça disputar com tabuleiro tão medíocre, descuidado e desatento. E ainda por cima dona Rozilda exigira sua definitiva ruptura com Cazuza Funil, quando o amigo – muito por baixo, recém-saído do xelindró, perseguido e processado como contraventor – mais carecia de solidariedade.
E ele, Gil, calhorda completo, cortava esquinas para evitá-lo, submisso às ordens da esposa.
Concluiu de nada adiantar sua sacrificada labuta, aproveitou uns dias de Inverno mais húmido para adquirir uma pneumonia barata – nem sequer uma pneumonia dupla ironizou dr. Carlos Passos – e emigrou para o astral. Silenciosamente numa tosse discreta e tímida. Fosse outro e poderia ter escapado, ter vencido a doença, pouco mais do que uma gripe. Gil, porém, estava cansado, tão cansado! Não se dispunha a esperar doença séria e grave. Além do mais não tinha ilusões: doença de qualidade, importante, moléstia da moda, cara, falada nos jornais, não chegaria para ele, o melhor seria mesmo contentar-se com sua mesquinha pneumonia. Assim o fez e, sem se despedir, faltou com o corpo, descansou.
E SEUS DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 22
Tão lorde ficara seu Rosalvo a ponto de, certo dia, indo pela Rua Chile, não reconhecer dona Rozilda e quase a atropelar, quando ela, pedestre e amável, atirou-se na frente do carro na ânsia de cumprimentar o próspero colega do marido. Não só o sujeito lhe metera um susto medonho com o ruído da busina desatada como ainda a xingara, gritando-lhe desaforos:
- Quer morrer piolho de cobra?
Em três ou quatro anos, com produtos farmacêuticos, lábia e simpatia, esse grosseirão obtivera automóvel, era sócio do Bahiano de Ténis, íntimo de políticos e ricaços, um fidalgo, meus senhores, cheio de empáfia, o rei na barriga! Dona Rozilda rangia os dentes, e o toleirão do Gil?
Ah!, Gil vegetava a pé ou de bonde, com suas amostras de atilhos, suspensórios, colarinhos e punhos duros, especialista em produtos fora de moda, reduzido a uma pequena freguesia de lojas suburbanas, de antiquados armarinhos. Não saía disso, marcando passo a vida inteira. Ninguém acreditava na sua capacidade, nem ele próprio.
Um dia cansou-se de tanta queixa e reclamação de tanto se esforçar sem resultado nem alegria. Porto, cunhado de sua mulher, marido de Lita, irmã de Rozilda, dava ele também um murro safado para viver, ensinando desenho e matemática a rapazes num estabelecimento estadual para artesãos, nas lonjuras de Paripe. De trem, todos os dias, de manhã cedinho, levantando-se com o sol, regressando ao fim da tarde. Mas aos domingos, saía pelas ruas da cidade e com uma caixa de tintas e pincéis a pintar coloridos casarios e tirava daquela ocupação tanta alegria a ponto de jamais ter sido visto de mau humor ou melancólico. Também casara-se com Lita e não com Rozilda, e Lita, o oposto da irmã, era uma santa mulher, cuja boca jamais se abrira para falar mal de vivente ou criatura.
Gil nem mesmo no jogo de damas ou do gamão obtinha progressos, e Antenor Lima só o aceitava de parceiro quando outro mais forte não aparecia; quanto a seu Zeca Serra, campeão da Ladeira, nem assim, nem para matar o tempo – não tinha graça disputar com tabuleiro tão medíocre, descuidado e desatento. E ainda por cima dona Rozilda exigira sua definitiva ruptura com Cazuza Funil, quando o amigo – muito por baixo, recém-saído do xelindró, perseguido e processado como contraventor – mais carecia de solidariedade.
E ele, Gil, calhorda completo, cortava esquinas para evitá-lo, submisso às ordens da esposa.
Concluiu de nada adiantar sua sacrificada labuta, aproveitou uns dias de Inverno mais húmido para adquirir uma pneumonia barata – nem sequer uma pneumonia dupla ironizou dr. Carlos Passos – e emigrou para o astral. Silenciosamente numa tosse discreta e tímida. Fosse outro e poderia ter escapado, ter vencido a doença, pouco mais do que uma gripe. Gil, porém, estava cansado, tão cansado! Não se dispunha a esperar doença séria e grave. Além do mais não tinha ilusões: doença de qualidade, importante, moléstia da moda, cara, falada nos jornais, não chegaria para ele, o melhor seria mesmo contentar-se com sua mesquinha pneumonia. Assim o fez e, sem se despedir, faltou com o corpo, descansou.
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