quinta-feira, janeiro 21, 2010


DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 24



A Andrés ameaçou com cadeia, atirando-lhe às fuças todo o seu círculo de relações de prestígio: fosse se meter com sua filha e veria o resultado, galego porco de uma figa, com suas imundices, sua devassidão; ela, dona Rozilda iria à polícia…

Andrés, também ele de cabelo na venta, espanhol de maus bofes, revidara no mesmo diapasão. Começou dizendo que galego o chifrudo pai de dona Rozilda: então ele, condoído com a situação da família após a morte de seu Gil, homem educado e bom, merecedor de melhor esposa, vinha oferecer um emprego à moça, a quem mal conhecia, no único intuito de ajudá-la, e a paga que obtinha era essa vaca histérica a gritar nas portas de seu estabelecimento, ameaçando deus e o mundo, inventando histórias, calúnias miseráveis? Se ela não silenciasse aquela latrina que usava como boca, que fosse se estourar nos infernos e depressa, quem chamaria as autoridades seria ele, cidadão estabelecido, cumpridor das leis, em dia com os impostos, ele, andaluz de boa cepa, e aquela bruxa a xingá-lo de galego…Indiferente à disputa o chinês limpava com um fósforo as unhas compridas como garras, unhas que segundo as más línguas…

Verdade ou não aquelas excitantes histórias, dona Rozilda não criara as filhas, não as educara, prendadas e gentis, para o bico de nenhum Andrés Gutiérrez, andaluz, galego ou chinês, pouco se lhe dava…As filhas eram agora a sua alavanca para o mudar o rumo do destino, sua escada para subir, para elevar-se. Recusou outros empregos mais bem intencionados, para Rosália e Flor, não queria as moças expostas ao público e ao perigo. Lugar de donzela é no lar, sua meta o casamento, assim pensava dona Rozilda. Mandar as filhas para balcão de armarinho, bilheteria de cinema, sala de espera de consultório médico ou dentário, era entregar-se, confessar a pobreza, exibi-la, chaga mais repulsiva e pestilenta! Poria as meninas a trabalhar, sim, mas em casa nas prendas domésticas por elas acumuladas, tendo em vista noivo e marido. Se antes prendas e matrimónio eram detalhes importantes nos planos de dona Rozilda, agora transformavam-se na peça fundamental de seus projectos.

Enquanto Gil fora vivo, dona Rozilda planejava formar o filho, fazer dele médico, advogado ou engenheiro e, apoiada no canudo de doutor, no diploma da Faculdade, ascender às elites, brilhar em meio aos poderosos do mundo. O anel de grau a resplandecer no dedo de Heitor seria sua chave para abrir as portas da gente da alta, desse mundo fechado e distante da Vitória, do Canela, da Graça. Ao lado disso, e em consequência, os bons casamentos das meninas, com colegas do filho, doutores de linhagem e de futuro.

A morte de Gil tornava impraticável aquele plano a longo prazo: Heitor ainda estava no ginásio, faltando-lhe dois anos para terminar o secundário – se atrasara, andara sendo reprovado nos exames. Como sustentá-lo durante cinco anos ou seis na Faculdade, estudos demorados e caros? Com esforço e sacrifício poderia mantê-lo no colégio – cursava ele o ginásio da Bahia, estabelecimento estadual e gratuito – até concluir o ginásio. Possuindo curso secundário completo, ser-lhe-ia possível escapar aos míseros empregos no comércio, a vida toda marcando passo, de metro na mão. Talvez conseguisse lugar num banco ou, por que não?, uma sinecura oficial, emprego público, com garantias e direitos, gratificações e aumentos, promoções, abonos e outros adicionais. Para tanto dona Rozilda contava com suas relações influentes.

Não contava mais, no entanto, com o título de doutor – o anel de formatura a rebrilhar, esmeralda, rubi ou safira – para atingir as sonhadas alturas. Uma lástima, não tinha jeito a dar, mais uma vez o bosta do marido arruinara seus projectos com aquela morte idiota.

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