sexta-feira, fevereiro 26, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 55





No outro dia, Flor quase não pôde levantar-se, o corpo todo doído, o lapo roxo no pescoço.

A Ladeira em peso comentava os acontecimentos, a negra Juventina, soberana em sua janela, a distribuir detalhes, doutor Carlos Passos criticando os métodos educacionais de dona Rozilda, se bem não lhe negasse razão para desgosto e zanga.

Vadinho compareceu na hora costumeira; todo o primeiro andar mantinha-se fechado, a sacada vazia, a porta da escada de ferrolho e tranca. A janela do quarto de Flor dava sobre a rua transversal, por entre as venezianas fugiam réstias de luz.
Logo houve quem contasse da surra da véspera, segundo as comadres, Flor suspirava presa no quarto, de chave passada.

Vadinho concordou com a negra Juventina quando a amásia de Antenor Lima definiu dona Rozilda com justeza e literatura: uma hiena bestial, é o que ela é, seu Vadinho; ouviu as notícias em silêncio, disse até logo, foi-se embora.

Para volver depois da meia-noite e abrir todas as janelas das redondezas, acordar a Ladeira e as ruas próximas com a mais maviosa serenata, tão maviosa e apaixonada como muitas poucas até hoje se fizeram nessa ou em qualquer outra cidade. Quem a escutou guarda sua lembrança imperecível nos ouvidos e no coração.

Também, pudera! Vadinho reunira para Flor o melhor de quanto existia. Trouxera o magrelo Carlinhos Mascarenhas, o cavaquinho de ouro; fora buscá-lo no castelo de Carla, no aconchegado leito de Marianinha Pentelhuda.

Ao violino, via-se a figura popular de Edgard Cocó, o non-plus-ultra, igual só no Rio de Janeiro ou nas estranjas. Soprava a flauta – e com que dignidade e maestria! – o bacharel em direito Walter da Silveira; Vadinho o arrancara de cima dos livros, pois, recém-formado, preparava-se a fundo para o concurso de magistrado; em breve escolhido meritíssimo juiz, não mais exibiria em público sua insigne flauta, privando as massas de celestial deleite. Quanto ao violão, dedilhava-o um moço querido de toda a gente por sua educação e alegria, seu gesto modesto e ao mesmo tempo fidalgo, sua competência no beber, sua finura no trato, e sua música: a qualidade única do seu violão, dele e de mais ninguém, e sua voz de mistério e picardia. Um retado. Aparecera ultimamente a toca e a cantar no rádio, e já o sucesso o cercava. Repetia-se seu nome, Dorival Caymmi, e os íntimos exaltavam suas composições inéditas, no dia em que fossem divulgadas, o moreno ficaria célebre. De Vadinho era amigo do peito, juntos haviam tomado os primeiros tragos e varado as primeiras madrugadas. Traziam de reserva a Jener Augusto, pálido cantor de cabaré, e de quebra a Mirandão, já bêbado.

Ao pé da ladeira, detiveram-se por uns minutos; o violino de Edgard Cocô soluçou os primeiros acordes, dilacerantes. Entraram a seguir o cavaquinho, a flauta, o violão – e Caymmi abriu o eco, soltou a voz em dueto com Vadinho, cujos gorjeios não valiam lá grande coisa. Grande era sua causa, sua paixão proibida: o desejo de desagravar a namorada, curar suas tristezas, apaziguar seu sono, trazer-lhe o consolo da música, prova de seu amor:

Noite alta, céu risonho
A quietude é quase um sonho
E o luar cai sobre a mata
Qual uma chuva de prata
De raríssimo esplendor…
Só tu dormes, não escutas
O teu cantor…

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