quarta-feira, março 03, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 59


- T’esconjuro, Vadinho, não seja herege… – Flor enrolava-se numa colcha vermelha. Tudo naquele quarto era excitante; quadros de mulheres nuas nas paredes, reproduções de desenhos onde faunos perseguiam e violentavam ninfas, um espelho imenso em frente ao leito, o tal Mário era um lorde, criara uma atmosfera pecaminosa, perfumes na penteadeira, bebidas no gelo. Flor sentia um frio no ventre.

- Se ele quisesse que a gente não vadiasse, fazia logo o povo todo capado e os meninos nasciam órfãos de pai e mãe… Não seja tola, deixa essa coberta…

Suspendeu o trapo vermelho, Flor desabrochou na brancura do lençol, Vadinho teve uma exclamação de alegre surpresa:

- Mas tu é pelada, quase pelada…Que coisa doida mais linda…

- Vadinho…

Com o seu corpo cobriu-lhe o pudor, ela cerrou os olhos. Rompeu a aleluia sobre o mar de Itapoã, a brisa veio pelos ais do amor e, num silêncio de peixes e sereias, a voz estrangulada de Flor em aleluia; no mar e na terra aleluia, no céu e no inferno aleluia!

Na manhã daquele dia Flor saíra a ajudar dona Maga Paternostro, aquela ricaça sua antiga aluna, num almoço de aniversário, rega-bofe para mais de cinquenta pessoas e ainda mesa de doces e salgados pela tarde. Dali partiu para encontrar-se com Vadinho e aconteceu o que tinha que acontecer. Dona Rozilda a fazia no fogão de dona Maga, ela estava empernada com Vadinho em Itapoã.

Daquele dia em diante a vida de Flor foi inventar pretextos para voltar com Vadinho à casinhola da praia. Recorria a amigas e a alunas: “Se mamãe perguntar se eu saí com você diga que sim”. Diziam, todas lhe tinham afeição e muitas simpatizavam activamente com a causa. Após a aula, uma delas anunciava:

- Vou levar Flor comigo à matiné, a pobre precisa esquecer…

Parecia estar esquecendo, rejubilava dona Rozilda. Nos últimos dias Flor já não mantinha a cara tão amarrada, desistira de ficar metida no quarto à espera de vê-lo surgir na rua – ao cafajeste – para então assumir ostensiva a janela, em franca provocação. O não-sei-que-diga demorava-se a tirar prosa no passeio da negra Juventina. Aquela peste e outras descartadas da vizinhança serviam de espoleta para o namoro, de leva-e-traz, dona Rozilda as tinha de olho, um dia lhe pagariam com juros. Flor atirava bilhetes a Vadinho, beijos com a ponta dos dedos. Até dona Rozilda perder a cabeça e explodir em desaforos contra a filha e o tratante, o patife a rir na esquina.

Nos últimos dias, no entanto, dona Rozilda sentira prenúncios de mudança. A atitude de Flor já não era a mesma, já não cantava modinhas tristes, não tinha na boca o tempo todo o asqueroso apelido do namorado e ele deixara de mostrar-se na rua. Reaparecera o sorriso de Flor, voltara a dar bom-dia e boa-tarde, a responder quando dona Rozilda lhe dirigia a palavra.

Na Baixa dos Sapateiros a eventual amiga recomendava despedindo-se:

- Juízo, hein! – e ria cúmplice.

Riam-se também Flor e Vadinho, enfiavam-se num táxi – sempre o mesmo, pertencia ao Cigano, chofer de praça e velho companheiro de Vadinho – a toda a velocidade a caminho de Itapoã, as mãos agarradas, roubando-se beijos pelo caminho.
Cigano ia buscá-los de volta ao crepúsculo, vinham sem pressa, a cabeça de Flor repousando no ombro de Vadinho, os negros cabelos ao sabor da brisa, e uma lassidão, uma ternura – o desejo
de continuarem juntos, por que se despediam?

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