quarta-feira, março 10, 2010



DONA FLOR
E SEUS
DOIS

MARIDOS


EPISÓDIO Nº 64




Dona Flor continuava em vigília e em desejo, sentindo o corpo de Vadinho contra o seu a estremecer no sonho, persistindo em jogar e ainda perdendo. A dormir, repetia números na danação da roleta: “dezassete, dezoito, vinte, vinte e três, seus quatro números fatais. Ou reclamava com raiva: deu gata. Flor seguia as variações de seu sonho, e o via a apostar na “lebre francesa”, melhor dito no “grande e pequeno”, o banqueiro levando as fichas de todo o mundo, pois dera gata. Ela acabara por conhecer toda a nomenclatura, a gíria, a louca matemática e a secreta sedução das arapucas do jogo. E assim, pela madrugada, ela o protegia contra o mundo, contra as fichas e os dados, contra os crupiês, contra o azar. Cobria-o com o seu corpo e o acalentava, assim dormindo Vadinho era uma criança loira, um menino grande.

Sucedia também ele não vir, prosseguindo a espera dia afora, prolongando-se na noite seguinte, já apodrecida em humilhação. Ao vê-la silenciosa e triste, as alunas evitavam as perguntas molestas para não desatar confusas lágrimas de pejo. Entre si comentavam em ásperas críticas à conduta e má vida do trampolineiro. Como tinha coragem de fazer chorar tão boa esposa? Mas bastava ele surgir com sua voz matreira, suas lérias, sua velhacaria, e velas, quase todas, se derretiam assanhadas, uma coceira no rabo e no xibiu.

Durante o dia, Vadinho multiplicava-se em esforço e correria, por vezes em desespero, para arranjar numerário para o jogo; em mesa de roleta não tem fiado, ficha só se vende à vista. Rondava pelos bancos, zanzando em torno aos gerentes e subgerentes, para garantir o desconto de uma promissória; cheio de astúcias ao dobrar e convencer hipotéticos avalistas para esse prometido desconto, ou para arrancar quase à força e a juros absurdos umas centenas de mil-réis das unhas somíticas de um agiota. Capaz de levar uma tarde inteira junto a um sovina qualquer, daqueles difíceis na queda, tinha certa satisfação em vencê-los, vendo-os finalmente tomar da caneta e apor a assinatura na letra promissória, sem forças para maior resistências. Avalizar um título ou dar um dinheiro, era a mesma coisa. Aliás, alguns mais práticos, assim resolviam o assunto: Vadinho aparecia com uma letra de um conto de réis a pedir aval, a vítima soltava-lhe uma nota de cem ou de duzentos para se ver livre. Porque senão, corria o perigo de assinar e, trinta ou sessenta dias depois, encontrar-se às voltas com um título vencido e sem pagamento. Perigo sério porque Vadinho não dava sopa a ninguém. Para resistir à sua lábia mais do que avareza, era preciso um zarro de inabaláveis convicções ideológicas, um insensível aos dramas da vida, um fanático, um sectário sem coração. Como o italiano Guilherme Ricci, da Ladeira do Taboão, da lendária canguinhez. Impávido, levou anos resistindo a Vadinho.

Outro a resistir com brilho foi o livreiro Dmeval Chaves, naquele tempo ainda simples gerente de livraria, não o ricaço de hoje. Mas um dia Vadinho colou-se a ele pela manhã, almoçaram juntos, entraram pela tarde, a aperreá-lo seis horas seguidas, tempo controlado por Mirandão em seu autêntico relógio suíço. Tonto, os ouvidos cansados, rendeu-se o esperto Dmenval:

- Vadinho, eu lhe juro que esta é a primeira letra que eu avalizo em toda a minha vida…

- Pois começa bem, meu velho, não podia começar melhor. É uma estreia de primeira ordem, agora é só continuar. Aliás, quem avaliza uma vez título, não para mais, toma gosto…

Saiu correndo para o banco, deixando o gordo gerente de boca aberta, adernado sobre o balcão de livros, jururu, sem ainda entender a razão do gesto louco, de autógrafo absurdo.


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