sexta-feira, março 12, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

Episódio Nº 66



Uma agonia, sem dúvida, quando a bola girava na roleta, o coração apertado em ansiedade, mas uma agonia gostosa. Jamais lhe ocorreu o vislumbre sequer de uma ideia suicida; nunca o nobre remordimento a devorar-lhe o peito; nunca a voz trágica da consciência a acusá-lo; imune a toda essa série espantosa de horrores a infelicitar a vida dos desgraçados que se deixam jugular ao vício da batota. É uma lástima, porém, que fazer se era assim? Impossível apresentar Vadinho sob tão simpática luz: como jogador acorrentado à sina irrevogável, odiando-se a si mesmo, querendo libertar-se e não poder, a remir-se com um tiro nas têmporas à saída do casino.

Era um destino tenso e rude, um destino de macho, isso certamente. Nenhum frouxo aguentaria aquela batalha a cada noite e a cada instante da noite, mas nunca Vadinho fizera de emocionante embate uma catástrofe de crimes e remorsos, infortúnio sinistro e irremediável. Sinistro? Era variado e divertido o seu destino. Irremediável? Sempre havia alguém para lhe emprestar dinheiro; incrível como tanta gente se decidia a fazê-lo. Quem sabe, faziam-no para assim arriscar-se no jogo sem ir aos casinos proibidos, às espeluncas mal afamadas? Destino de fundas e exaltantes emoções.

Como naquela noite de Agosto de início tão ruim: ele tentando afanar o dinheiro de dona Flor, ela resistindo, era o dinheiro das despesas, e a discussão, os desaforos, as queixas, os gritos, os insultos. Soltara, finalmente, trinta míseros mil-réis e com eles Vadinho iniciou a gloriosa marcha. No Abaixadinho os dados rolavam na “lebre francesa”. Vadinho colocou dez mil-réis no grande – só apostava no grande – e o chorrilho teve começo. Deu grande, acredite-se ou não, catorze vezes seguidas e Vadinho mantendo as apostas, rodeado por uma nervosa aglomeração de jogadores e meretrizes, disposto a sustentar o grande até o fim dos séculos. Ao saber, Mirandão veio correndo como um doido da outra onde jogava ronda, e gritou-lhe:

- Pare pelo amor de seus filhos, que a sorte vai virar.

Vadinho não tinha filhos e não ia parar, mas Mirandão que os tinha metera a mão nas fichas e as retirara ele próprio, empurrando Vadinho, levando-o dali. Com razão, pois deu o pequeno e depois deu gata, novamente o pequeno e gata outra vez, enquanto Vadinho saía a contra gosto e opulento.

Naquela noite, os bolsos abarrotados, recordando dona Flor a lhe dizer, em prantos, “você não presta mesmo, não vale nada e não gosta nem um pingo de mim”, ele desejou chegar a casa ainda cedo e com um presente, mas um presente de arromba, não uma pinóia qualquer. Um colar, um anel, uma pulseira, uma jóia de valor. Onde porém adquiri-la, se o comércio estava fechado. Quem sabe, opinou Mirandão, conseguiria ele um troço vistoso com uma quenga da zona? Mulheres damas, por vezes, recebem valiosas dádivas, quando enxodosadas com um coronel do cacau ou fazendeiro do serão aproveitam-se para encher seu pé-de-meia, algumas até deixam de fazer a vida, estabelecendo-se com salões de beleza ou armarinhos. Mirandão conhecia duas que terminaram por se casar e deram senhoras honestíssimas.

Saíram a procurar, correram ceca e Meca, de cabaré em cabaré, de castelo em castelo, de pensão em pensão, e onde chegavam iam baixando cerveja, vermute e conhaque para quem quisesse beber, as despesas por conta de Vadinho.
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Expuseram e revolveram os pobres enfeites de dezenas de raparigas, não encontravam senão quinquilharias, metal cromado, vidro colorido, latão – e a noite a avançar.

“Quero chegar cedo, fazer uma surpresa completa” Vadinho com pressa, vexado, antegozando a
cara de dona Flor ao vê-lo antes da meia-noite, de presente na mão.

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