DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
Agora, estendida no leito de ferro, dona Flor buscava não ouvir o matraquear de dona Rozilda na porta da rua, em animada palestra com dona Norma, para melhor recolher na memória perdida, na distância de tempo, as vozes dos cantores, o ritmo dos instrumentos, aquela emocionante serenata da Ladeira do Alvo; para encher suas horas e conter seu coração nessas noites não mais de espera pois ele morrera, seu marido. Contava agora tão-somente com um mundo de lembranças, nele recolhida, refugiada em recordações, cinzas com que apagar a brasa do desejo vivo. Como se houvesse erguido um muro de clausura, a separá-la do cochicho e do mexerico, das conversas e dos comentários, de quanto pertur basse a sua viuvez recente, aquela nova realidade da ausência.
Nos tempos iniciais de nojo, movia-se apenas na dor e na ânsia, na necessidade e na impossibilidade de tê-lo ali, a seu lado. Impossível para sempre e nunca mais.
Abafando, sob a música e o canto recordados, a voz e o escárnio de dona Rozilda, abrigava-se dona Flor nas lembranças do passado: naquela noite chegara à janela com os primeiros acordes. Doía-lhe o corpo, o couro cru fizera-lhe um lenho no pescoço, ela era um trapo, um trapo batido e aviltado.
Vadinho subia a ladeira a cantar, os braços erguidos para o alto. Reconheceu os demais: a voz inconfundível e inigualável de Caymmi, Jenner Augusto mais pálido ainda sob a lua, e, a acompanhá-los nos instrumentos e no coro, Carlinhos Mascarenhas, Edgard Cocô, doutor Walter da Silveira e Mirandão. Fora buscar correndo aquela rosa escura e rara, colhida na véspera no jardim de tia Lita. Tudo andava revolto em sua vida, numa barafunda, em completo descontrole, ela própria submetida à férrea autoridade de dona Rozilda. A música lhe dera forças e coragem. De repente se sentiu satisfeita por não passar Vadinho de reles serventuário municipal, lotado em mísero emprego, e não lhe importava fosse ele irrecuperável jogador.
Com a lembrança de noites assim, de luar e ternura, dona Flor, insone, tenta aplacar a dor e o desespero de saber que nunca mais Vadinho virá tocar e acender as brasas de seu corpo. Na noite longa de espera, não voltará a ouvir na rua a sua voz desafinada em outras serenatas.
Acontecia quando Vadinho, tendo excedido todos os limites – noites seguidas sem dormir em casa ou como naquela vez em que, ainda recém casados, jogara o dinheiro do aluguel e nada lhe dissera, fazendo-a passar por caloteira – queria fazer as pazes, pois dona Flor, nessas ocasiões, deixava de se dirigir a ele, desconhecendo sua presença, como se não tivesse marido.
Inquieto, Vadinho rondava suas saias, com palavras aduladoras, convites e provocações para excitá-la e conduzi-la a vadiar. Nas trincheiras da mágoa e do vexame, resistia dona Flor.
Vadinho apelava para as grandes cartadas: ir com ela ao cinema, acompanhá-la a pagar visita há tanto tempo devida a dona Maga ou ao padrinho de Heitor, doutor Luís Henrique. Ou bem organizava uma serenata, vinha acalentar seu sono, deslumbrando a rua. Não mais trazia, no entanto, a Dorival Caymmi com o mistério de sua voz nem ao doutor Walter da Silveira.
Caymmi emigrara para o Rio, fazia programas na rádio carioca e gravava discos, cantores de renome lançavam seus sambas, suas modinhas praieiros. Doutor Walter, nem falar: juiz no interior, a flauta encantada ninando apenas o sono dos filhos pequenos, uma corte de meninos e meninas, um por ano quando não dois numa única barriga.
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÒDIO Nº 69
Agora, estendida no leito de ferro, dona Flor buscava não ouvir o matraquear de dona Rozilda na porta da rua, em animada palestra com dona Norma, para melhor recolher na memória perdida, na distância de tempo, as vozes dos cantores, o ritmo dos instrumentos, aquela emocionante serenata da Ladeira do Alvo; para encher suas horas e conter seu coração nessas noites não mais de espera pois ele morrera, seu marido. Contava agora tão-somente com um mundo de lembranças, nele recolhida, refugiada em recordações, cinzas com que apagar a brasa do desejo vivo. Como se houvesse erguido um muro de clausura, a separá-la do cochicho e do mexerico, das conversas e dos comentários, de quanto pertur basse a sua viuvez recente, aquela nova realidade da ausência.
Nos tempos iniciais de nojo, movia-se apenas na dor e na ânsia, na necessidade e na impossibilidade de tê-lo ali, a seu lado. Impossível para sempre e nunca mais.
Abafando, sob a música e o canto recordados, a voz e o escárnio de dona Rozilda, abrigava-se dona Flor nas lembranças do passado: naquela noite chegara à janela com os primeiros acordes. Doía-lhe o corpo, o couro cru fizera-lhe um lenho no pescoço, ela era um trapo, um trapo batido e aviltado.
Vadinho subia a ladeira a cantar, os braços erguidos para o alto. Reconheceu os demais: a voz inconfundível e inigualável de Caymmi, Jenner Augusto mais pálido ainda sob a lua, e, a acompanhá-los nos instrumentos e no coro, Carlinhos Mascarenhas, Edgard Cocô, doutor Walter da Silveira e Mirandão. Fora buscar correndo aquela rosa escura e rara, colhida na véspera no jardim de tia Lita. Tudo andava revolto em sua vida, numa barafunda, em completo descontrole, ela própria submetida à férrea autoridade de dona Rozilda. A música lhe dera forças e coragem. De repente se sentiu satisfeita por não passar Vadinho de reles serventuário municipal, lotado em mísero emprego, e não lhe importava fosse ele irrecuperável jogador.
Com a lembrança de noites assim, de luar e ternura, dona Flor, insone, tenta aplacar a dor e o desespero de saber que nunca mais Vadinho virá tocar e acender as brasas de seu corpo. Na noite longa de espera, não voltará a ouvir na rua a sua voz desafinada em outras serenatas.
Acontecia quando Vadinho, tendo excedido todos os limites – noites seguidas sem dormir em casa ou como naquela vez em que, ainda recém casados, jogara o dinheiro do aluguel e nada lhe dissera, fazendo-a passar por caloteira – queria fazer as pazes, pois dona Flor, nessas ocasiões, deixava de se dirigir a ele, desconhecendo sua presença, como se não tivesse marido.
Inquieto, Vadinho rondava suas saias, com palavras aduladoras, convites e provocações para excitá-la e conduzi-la a vadiar. Nas trincheiras da mágoa e do vexame, resistia dona Flor.
Vadinho apelava para as grandes cartadas: ir com ela ao cinema, acompanhá-la a pagar visita há tanto tempo devida a dona Maga ou ao padrinho de Heitor, doutor Luís Henrique. Ou bem organizava uma serenata, vinha acalentar seu sono, deslumbrando a rua. Não mais trazia, no entanto, a Dorival Caymmi com o mistério de sua voz nem ao doutor Walter da Silveira.
Caymmi emigrara para o Rio, fazia programas na rádio carioca e gravava discos, cantores de renome lançavam seus sambas, suas modinhas praieiros. Doutor Walter, nem falar: juiz no interior, a flauta encantada ninando apenas o sono dos filhos pequenos, uma corte de meninos e meninas, um por ano quando não dois numa única barriga.
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