quarta-feira, março 17, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 70




Não era fácil, nesses levianos tempos de irreflexão e desatino, encontrar quem cumprisse seus deveres – todos os seus deveres sem excepção – com tamanho senso de responsabilidade quanto o zeloso e culto magistrado.

Agora também já não viria, e nunca mais, ai nunca mais!, Vadinho. Nem sua voz, nem seu riso de deboche, nem sua mão corrida, sua mata de pelos loiros, seu atrevido bigode, nem seu sono de fichas e paradas. Dona Flor já não tinha sequer a espera dolorosa. O que não se dispunha a pagar para novamente caber-lhe o direito ao sofrimento de aguardá-lo, à agonia de escutar o silêncio nocturno da rua pacata, de sentir o passo do marido, incerto no peso da cachaça!

De nada adiantava rogasse dona Norma a dona Rozilda, na porta de frente, apelando para sua compreensão:

- Quanto menos se fale em Vadinho, melhor, mais fácil ela esquecer. Flor ainda está muito sentida, para que ficar lembrando as ruindades dele, azucrinando a pobre?

Não adiantava. Dona Rozilda tinha vindo mesmo com a intenção de azucrinar; não conhecia outra maneira de distribuir consolo. Como estancar aquelas lágrimas imerecidas, senão vomitando cobras e lagartos contra o finado? Já antes dissera e repetira: aquela não era morte para choro e, sim, para foguetório. Na conversa nocturna, alardeava mais uma vez a sua opinião, quase aos gritos, pouco lhe importando quem a ouvisse.

Não adiantava tampouco, porque dona Flor, no ruído ou no silêncio, não consegue esquecer. Nem os malfeitos, as ruindades, quanto mais e principalmente as horas boas e a gentil presença, as doidas palavras do perdido e sua força de homem a possui-la, e sua fragilidade de homem a acolher-se em seu corpo, a proteger-se em sua ternura.

Sofrimento quase mórbido, doentio, amargo desinteresse pela existência. Em esforço quotidiano, no entanto, dona Flor procurava superar o vazio interior, conter as lágrimas, ir adiante. Depois da missa de sétimo dia, reabrira a escola de culinária. As alunas retornaram, a princípio evitando as troças habituais, as piadas maliciosas, as anedotas, as gargalhadas de entremeio com as receitas, a criarem a atmosfera cordial e simpática das aulas em torno aos fogões de lenha e de carvão. Não durou mais de dois ou três dias esse cenário de luto, a alegre normalidade se impunha e a própria dona Flor gostava que assim fosse: rompia o círculo de cinzas.

Retomaram todas, excepto a pequena Ieda com sua cara de gata arisca e seu desvendado segredo. Receio de enfrentá-la, a ela, dona Flor, ou de enfrentar a casa órfã da graça de Vadinho, de seu riso, de suas astúcias, de sua insolência?

No que concerne a dona Flor, podia vir, já não lhe importa saber nem discutir, muito menos acusar. Só uma coisa tem vontade de pôr em pratos limpos: estaria de barriga, a fingida, prenha dele, grávida de filho seu?

Dona Flor jamais pegara menino, mas sabia ser culpa sua e não do marido. A doutora Lourdes Burgos, sua médica lhe explicara e o doutor Jair havia confirmado e proposto ligeira operação capaz de torná-la fecunda, quem sabe? Medrosa, dona Flor, furtou-se à cirurgia: ao demais, doutor Jair não lhe dera certeza absoluta de sucesso. Assim, nas trampolinagens do marido o que mais a preocupava era o receio dele arranjar um filho por aí, na rua, ao deus-dará.

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