segunda-feira, março 22, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

EPISÓDIO Nº 74




Dona Flor estremeceu. Viera para levar uma daquelas crianças, uma recém-nascida, para assim garantir-se contra ela e sua mãe. Mas, vendo os meninos soltos na Praça do Terreiro, seu coração se encheu de piedade, de um sentimento nobre e puro; naquela hora, se pudesse, adoptaria todos eles, não apenas o filho de Vadinho. Aliás, o filho de Vadinho não precisava dela para escapar àquela vida. Vadinho não o abandonaria jamais, não era de sua natureza largar uma criança ao desamparo, quanto mais rebento seu, nascido de seu sangue. Em vez de negar a paternidade, ele a proclamaria, dela fazendo praça, encantado e orgulhoso.

Sempre o soubera dona Flor, de ciência certa, de um saber sem dúvidas, apesar dos silêncios e das reticências do marido: um filho para Vadinho seria um dos maiores acontecimentos, a verdadeira sorte grande, a parada sem exemplo, o estouro da banca. Por isso ela tanto se afligira com a notícia trazida por dona Dinorá. Era o perigo maior, a temida ameaça. Afinal, Vadinho já lhe pertencia tão pouco; dominado pelo jogo e pela boémia, que sobras lhe restariam se um filho se erguesse entre eles, a chamá-lo de um beco esconso, de um canto de rua, do leito de uma vagabunda? Esse filho que ela não lhe dera.

Ao ter a notícia ficou desesperada, num padecimento tão grande a ponto da própria dona Norma perder a cabeça. De ordinário tão executiva, encontrando solução para todos os inúmeros problemas que lhe propunham a cada momento, ela também não atinava com a saída nem acerto, confusa e aflita.

- E se dissesse a ele que está grávida? – nada de melhor lhe ocorrera que essa pobre mentira.

- De que adianta? Vai terminar descobrindo, é pior…

Foi dona Gisa quem encontrou a decifração para a charada, recurso não só honroso como prático, proposta capaz de resolver tudo e muito mais, quem sabe? A gringa era uma retada nesses assuntos de psicologia e outras metafísicas, até o professor Epaminondas Souza Pinto tirava-lhe o chapéu, “mulher de muita erudição”e o professor Epaminondas Souza Pinto não era um qualquer, jamais errara na colocação de um só pronome e ditava (gratuitamente) regras gramaticais no semanário de Paulo Nacif, folha de pouca circulação mas próspera em anúncios.

Quando puseram dona Gisa a par dos acontecimentos – dona flor em agonia, dona Norma perdida – ela logo os destrinçou e instruiu as amigas em seu português arrevesado. Se Vadinho tanto desejava um filho, a ponto de ir fazê-lo na rua, em mulher dama, pois era dona Flor estéril, não podendo conceber; se esse filho nascido de outra podia levar Vadinho embora para sempre – então só cabia a dona flor um recurso para garantir o marido e o lar: trazer para casa esse filho bastardo de Vadinho e fazer-se mãe dele, criando-o como se o houvesse parido.

E por que não? Por que gritava assim dona Flor, praguejando igual a uma norte-americana milionária – a comparação era de dona Gisa, espantada ante a reacção da vizinha – jurando que isso jamais, jamais o filho da outra, da cachorra, da puta sem vergonha? Por que esse escândalo, se uma das coisas mais admiráveis do Brasil era, segundo a opinião da gringa, a capacidade de compreender e conviver? Tão comum mulheres casadas criarem filhos espúrios dos maridos, ela mesmo conhecia alguns casos, tanto entre gente pobre como entre gente rica. Ali junto, na rua, dona Abigail não criava a filha do esposo com uma sujeita e não o fazia com o mesmo terno amor reservado aos quatro filhos de seu ventre? Uma beleza, e que beleza! Por essas coisas dona Gisa
gostava do
Brasil e se naturalizara brasileira.

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