terça-feira, março 23, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 75





Que culpa tinha o menino, que pecado cometera? Por que deixar pobre criança, sangue de Vadinho, seu marido, exposta a uma vida de privações, subalimentada, crescendo na fome e no vício, rato dos esgotos do Pelourinho, sem direito à educação e aos bens da vida? E, ao demais, não temia dona Flor – e com razão – ficasse Vadinho preso à mãe da criança para estar junto do filho, do seu filho? Se ela, dona Flor o fosse buscar e o tomasse para criar como filho seu, que prova de amor mais convincente? Aquela criança, nascida de outra, seria o elo a ligar para sempre Vadinho e Flor, sem mais nenhum receio e ameaça.

E quem sabe, quem sabe, minha prezada, com esse filho em casa, crescendo e educando-se sadio e lindo no carinho de dona Flor, sendo para Vadinho, permanente alegria mas também permanente responsabilidade, quem sabe não mudaria o malandro o seu modo de vida, largando de vez o jogo e a estroinice, tomando jeito e vergonha? Era bem possível, sobravam exemplos.

Sobravam, sim, apoiou dona Norma, entusiasta, “eta gringa danada de sabida!” Dona Norma imediatamente criara nomes e endereços. Quem mais viciado no jogo e na cachaça do que o doutor Cícero Araújo, um de Santo Amaro da Purificação? A pobre esposa, dona Pequena, sofria as penas do inferno. Um dia ela pegou barriga e nem o menino nascera, já doutor Cícero virara o cidadão mais exemplar. E seu Manuel Lima, doido por uma rapariga… Bem… esse, em verdade, não precisara de filho, endireitara com o casamento, marido mais correcto não existia…

Dona Gisa dava o conceito da charada: aquele filho, no qual dona Flor enxergava ameaça tão violenta à estabilidade do seu lar, poderia se transformar, num passe de mágica, em sua segurança, na garantia de seu amor, e, de quebra, ainda era capaz de regenerar Vadinho. Uma pena, aliás, pensou dona Gisa; regenerado, Vadinho ia perder todo o interesse, aquele suspeito mistério, aquela graça dissoluta.

Abriram-se os olhos de dona Flor, entendeu. Iluminou-se de alegria, atirando-se nos braços da amiga, a agradecer. Traçaram demorados planos, detalhe por detalhe. Não era fácil, muito pelo contrário. Não fosse o apoio de dona Norma, talvez dona Flor não tivesse reunido suficiente coragem para se dirigir à zona das mulheres perdidas, às ruas do “baixo meretrício” tão amedrontadoramente citadas nas crónicas policiais das gazetas, para se tocar, feita uma doida, em busca de tal Dionísia e lhe exigir o filho recém-nascido, tomá-lo em definitivo, levá-lo para sempre, com escritura pública, estabelecida em cartório, com firmas reconhecidas e testemunhas idóneas. Dona Norma, solícita e fraternal, prontificou-se a acompanhá-la e a animou. Curiosa também, deve-se dizer; há muito desejava a oportunidade para espiar uma rua de prostituição, a morada das marafonas, sua vida sórdida. Nunca encontrara antes pretexto válido para a proibida excursão.

Como deixar a pobre Flor aventurar-se sozinha naqueles ameaçadores labirintos? – perguntou Elsa a Zé Sampaio, quando o marido, no assombro da notícia, ainda a tentara dissuadir.

- Não sou mocinha tola, sou mulher de maior e de respeito, ninguém vai se atrever a tirar prosa comigo – e revelava os amadurecidos planos a Zé Sampaio vencido, incapaz de resistir ao ímpeto vital da esposa: - A gente vai Domingo de manhã. Vou como se fosse visitar o meu afilhado, o neto de João Alves. Depois peço a João que acompanhe a gente à casa da fulana. E João, você sabe, é mestre de capoeira…

E assim o fizeram.

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