sexta-feira, março 26, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 78





Palavras e frases confundiram-se nos andares, alguém cantava modinha de tristezas com uma pequena voz. Quando atingiram o patamar do terceiro piso, o cheiro de alfazema queimada em defumadores de barro os alcançou, anunciando a existência de criança nova. Desembocaram num corredor; ao fundo a porta do quarto da rapariga.

João Alves bateu com o nó dos dedos.

- Quem é? – perguntou uma voz morna e descansada.

- É de paz, Dió… Sou eu, João Alves e tem duas excelências comigo querendo falar com você. Eu conheço uma, é minha comadre, gente de bem, merecedora…

- Pois vão entrando e desculpando o desarranjo, nem tive tempo de arrumar o quarto…

Entraram atrás do negro. Na peça estreita, uma cama de casal, um armário capenga, um lavatório de ferro com bacia e balde de esmalte, um urinol ao pé do leito, tudo muito asseado. Na parede, um espelho partido e uma estampa do Senhor do Bonfim com fitas bentas penduradas. Uma janela abrindo sobre os fundos do sobrado, por ela penetravam a claridade e a modinha triste.

Reclinada nos travesseiros, meia coberta com um lençol, vestida com uma bata de rendas cujo decote lhe exibia os seios pejados, a mulata Dionísia de Oxóssi sorria cordial para as surpreendentes visitas. Na curva de seu braço, no calor de seu peito, o filho adormecido. Uma criança grande, de um moreno carregado. Sob uma cadeira, um defumador queimava alfazema, perfumando peças de roupa do recém-nascido colocadas sobre a palhinha do assento. Além da cadeira, dois caixões de querosene cobertos com papel de seda faziam a vez de tamboretes. No ângulo da parede ao fundo, o peji com as armas de Oxóssi, o arco e a flecha, o erukerê, uma estampa de São Jorge a matar o dragão, uma pedra verde fetiche talvez de Iemanjá, e um colar de contas azul turquesa.

- Seu João – ordenou a mulata com sua voz descansada – faça o favor, tire essas roupinhas da cadeira, ponha no armário, é para o neném mudar depois do banho. Dê a cadeira a essa moça… - apontava dona Norma, voltando-se depois para dona Flor, a explicar-lhe num sorriso: - a senhora, que é mais moderna, vai desculpando, tem mesmo de sentar no caixão.

Da cama, reclinada, presidia ela aos arranjos no quarto, a movimentação do engraxate a arrastar a cadeira e os caixões, tranquila e sorridente, nem sequer curiosa do motivo daquelas intempestivas visitas. Quem a visse assim, tão calma a ordenar, compreenderia por que o pintor Carybé a retratara vestida de rainha, num trono de afoxê.

Dona Norma, na dianteira do negro, arrebanhou camisola e fralda, pôs tudo no armário e, ao fazê-lo, dera balanço completo nos vestidos, nas blusas, nos sapatos e sandálias da mulata.

- Puxe um caixão para vosmicê também, seu João, e tome assento.

- Fico mesmo de pé, Dió, assim estou bem.

- Maneira certa de se conversar é na maciota e sentado, seu João, de pé e com pressa não ajuda o entendimento.

O negro, porém, preferiu encostar-se à janela, voltado para a manhã cada vez mais luminosa. Um resto de canção entrava quarto adentro, vinha morrer plangente na cama de Dionísia:

Nas cadeias de teu amor,
Escravizada serva,
Meu senhor!

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