sexta-feira, abril 02, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 83




Nos primeiros tempos de viuvez, tempos de nojo, de luto fechado, permaneceu dona Flor em preto e em silêncio, numa espécie de devaneio, nem sonho nem pesadelo, entre o crescente murmúrio das comadres e as memórias dos sete anos de casamento. As comadres eram dez, eram cem, eram mil, numa solidariedade ruidosa e constante; lá vinham elas no rastro de dona Rozilda a cercá-la numa corte de mexericos, as vozes erguidas num coral de acusações a Vadinho, dona Rozilda de solista, tendo como sua imediata dona Dinorá, idênticas na língua de vitupérios.

Dona Flor trancada em sua aflição e anseio, fluía em meio àquele mundo de lembranças, recordando os momentos de riso e as horas de amargura, querendo reter a imagem de Vadinho, sua sombra ainda esparsa na casa, densa no quarto de dormir e vadiar.

Finalmente, que desejavam todas elas, as inúmeras comadres? As vizinhas, as conhecidas, as alunas, as amigas, sua mãe viajando de Nazareth para fazer-lhe companhia naquele transe, e até pessoas estranhas, como uma circunspecta dona Enaide, relação de dona Norma? Essa digna senhora se abalara do Xame-Xame, onde morava – como se não tivesse marido e filhos, obrigações domésticas – para vir, toda gentil, expor malfeitos de Vadinho, a pretexto de visita de pêsames. Que desejavam elas? Que pretendiam, ao reavivar cicatrizadas feridas, ao reacender essas extintas fogueiras de sofrimento? Por que lhe confidenciava dona Enaide, como se lhe emprestasse solidariedade, conhecer de perto aquela fatal Noémia, hoje senhora gorda e casada (o marido escrevia aos jornais) mas conservando ainda entre os seus papéis um retrato de Vadinho?

Dona Flor vivia com as boas e as más recordações, todas elas a ajudavam a carregar o nojo, a transpor aquele tempo gris de desespero e ausência, um deserto de cinzas. Mesmo ao rever lembranças e imagens tão detestáveis como a da ex-aluna com seu riso zombeteiro e sua cínica impudência, mesmo ao ferir-se novamente em tais espinhos, ao rememorar aquelas humilhações sentia uma espécie de agre consolo, como se lembranças e imagens, espinhos e humilhações, tudo quanto vivera com ele fosse lenitivo para esse sofrimento, esse de agora, sem medida e sem jeito. Porque afinal, quem saíra vitoriosa, quem vencera a parada, quem ficara com ele? Por quem se decidira Vadinho, quando dona Flor um dia, tendo chegado ao derradeiro limite, lhe dera um ultimato: ou ela ou a outra? As duas, não; fosse embora com a tipa se quisesse (a imunda espalhava aos quatro cantos a notícia do seu próximo acasalamento com Vadinho) mas fosse quanto antes, decidisse logo… E o que acontecera, que decisão ele tomara?

Noémia viera aprender arte culinária, estava às vésperas de casar-se e o noivo exigia esposa com teoria e prática de temperos. Era um esnobe esse noivo, um janota metido a entendedor de cinema e literatura, todo cheio de si e de pretensa erudição, citando autores e arrotando críticas, um jovem génio brilhando ao sol da glória em porta de livraria. Porque lhe parecia bem, quisera Noémia senhora da arte do vatapá e do caruru, “quero vê-la proletarizada, essa burguesa…” Ela achou a ideia divertida e inscreveu-se na Escola Sabor e Arte.

Filha de tradicional família da Graça, rica, elegante, achava batuta ser noiva de intelectual tão rafinê, mais batuta ainda lhe parecia Vadinho com seu ar cafageste e seus olhos sonolentos. Quando se deram conta – a família ilustre e o talentoso pretendente – Noémia estava aprendendo era descaração, e da grande, com Vadinho, no castelo de Amarildes. Foi um fusué dos diabos, ameaçando transformar-se em magnífico escândalo.

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