terça-feira, abril 06, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 86


As outras trancaram as bocas, quem se incomoda em transmitir alvissareiras novas? Para isso não há urgência nem sofreguidão, ninguém sai correndo rua fora. Só para as más notícias. Para levá-las, sobram os arautos, não falta quem se dê aos maiores incómodos, quem largue trabalho, interrompa descanso, quem se sacrifique. Dar uma notícia ruim, coisa mais emocionante!

Não fosse o puro acaso e dona Flor teria ido embora naquela tarde em que Vadinho desceu ao fundo da sua ignomínia, desnudou-se em baixeza; chegara a arrumar as malas. Havia sempre um quarto à sua disposição em casa dos tios, no Rio Vermelho. Por um quase nada não se foi de vez, no definitivo rompimento. No entanto, a rua estava cheia de comadres, atraídas pelos gritos e pelo choro, e todas viram quando o Cigano chegou e todas o escutaram falar com voz trémula, foram testemunhas da reacção de Vadinho.

Alguma delas contou a cena a dona Flor, repetiu-lhe as palavras do Cigano? Pois sim, que esperança! Nem uma só para remédio, como se nada houvessem visto e ouvido. Ao contrário, todas as xeretas apoiavam a sua decisão, reconheciam-lhe motivos de sobra para romper de uma vez e para sempre com o canalha. Algumas até ajudavam na preparação das malas.


Quando Vadinho apareceu naquela tarde, dona Flor imaginou em seguida o motivo da inopinada presença. Quanto mais assuntava em suas maneiras, mais se convencia; nunca estivera tão discreto com as alunas, quase escondido num canto da sala, deixando-as concluir tranquilas, na cozinha a aula prática, um bolo de aniversário. As moças, componentes da turma nova, riam numa curiosidade sem disfarces, no desejo de conhecerem o falado marido da professora, com sua fama singular: à sua maneira Vadinho era célebre. Finda a aula, quando, entre exclamações e elogios, foram servidas fatias de bolo e cálices de licor de cacau – especialidade da casa, orgulho de dona Flor, cuja competência em licores de ovo e frutas corria parelha com a fama de seu tempero – com uma ponta de jactância, um ar vaidoso, ela apresentou:

- Vadinho, meu marido…

Nenhuma piada, nenhuma frase de duplo sentido, nem um piscar de olhos. Vadinho mantinha-se sério e quase triste; dona Flor conhecia o significado daquela expressão e tinha-lhe medo. Ah! se pudesse reter as alunas pela tarde e pela noite, prolongando a conversa, mesmo com o perigo do valdevinos por as mangas de fora, sair com suas ousadias. Ah!, se pudesse evitar o colóquio, o vis-à-vis com um Vadinho incapaz de fitá-la de frente, dobrado ao peso de suas piores intenções… Mas as alunas, moças e senhoras de intensa vida social, churupitavam o licor às carreiras, despediam-se.

Na véspera, dona Lígia Oliva mandara-lhe pagar – regiamente – os doces e salgados, uma encomenda enorme, para a recepção de uns lordes de São Paulo. Desde o casamento, dona Flor circunscrevera-se à lida com a Escola, recusando encomendas. Abria, no entanto, algumas excepções, para pessoas de sua estima: “de dona Lígia sou devota”, disse ao assumir empreitada de tal monta.

Esses dinheiros extraordinários, quase sempre recebidos na ausência de Vadinho, dona Flor os reservava para despesas inesperadas, uma compra maior, uma doença, qualquer precisão. Acontecia-lhe, inclusivé, juntar alguns contos de réis, bolo de notas oculto em esconderijos pela casa. Economias para a aquisição de utensílios domésticos, de presentes de aniversário, para as mensalidades da máquina de costura, e consumidas em grande parte em empréstimos a
Vadinho, aos cem e duzentos mil-réis.

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