DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO nº 88
“Hipocrisia, nada além de hipocrisia, carícias para romper minha resistência, impossibilitar-me a negativa, carícias para minha fraqueza de mulher”. Juntou todas as forças, agravos antigos, a pequena reivindicação de um rádio novo, pôs-se de pé, vexada de desgosto:
- Por que não diz logo ao que veio? Ou pensa que não sei?
Sério e triste o rosto de Vadinho; vinha porque tinha de vir, porque nada conseguira em parte alguma, mas não vinha contente, de peito aberto e riso solto, ah! se pudesse não vir!
Também ele sabia o destino que dona Flor pensara dar àquele dinheiro. Seu Edgar Vitrola ainda não aparecera, pois o antigo aparelho continuava na sala como Vadinho constatou ao abrir a porta. Mas podia aparecer a qualquer momento com a oitava maravilha do mundo, beleza de móvel em pau marfim e metal cromado, última palavra em maquinaria, em ondas e faixas, em quiloates e voltagens, capaz de captar as mais longínquas emissoras, as do Japão e as da Austrália, as de Addis-Abeba e de Hong-Kong, sem esquecer os subversivos programas de Moscovo, tanto mais proibidos quanto mais procurados. Dona Flor mandara recado urgente a seu Edgard, por intermédio de Camafeu, tocador de berimbau e companheiro inseparável de Vitrola.
Primeiro no bonde, com seu palpite e sua vergonha, depois a pé pela rua, viera Vadinho partido em dois. Um na pressa de chegar antes do vendedor de rádios, nunca um palpite o possuíra tanto assim; o outro no desejo de chegar tarde após seu Edgard, não mais encontrando nem o rádio velho nem os cobres pagos por dona Lígia, dinheiro ganho por sua mulher à custa de trabalho e de suor: atravessara a noite junto ao forno, após um dia sem descanso. Partido em dois, no bonde; vindo pela rua, entrando em casa, abrindo a porta: partido em dois. Se seu Edgard não tivesse passado, que sinal mais certo da infalibilidade do palpite?
Mas se já encontrasse o novo aparelho, ficaria em casa naquela noite, ao lado de dona Flor, estreando-o ouvindo música, rindo com as piadas. Partido em dois, dividido pelo meio, assim viera Vadinho.
Por que seu Edgard não passara antes? Agora não tinha mais remédio.
- Tu pensas que é só por interesse que eu te agrado?
- Só por interesse e nada mais…
Apenas interesse, vil interesse; retesava-se dona Flor:
- Por que não fala logo?
Um muro os separava naquela hora do crepúsculo quando a tristeza irrompe no horizonte em cinza e em vermelho, quando cada coisa e cada vivente morre um pouco no morrer do dia.
- Já que é assim tu vai emprestar nem que seja duzentos mil réis.
- Nem um tostão…Tu não vai ver nem um tostão…Como tu ainda tem coragem de falar em empréstimo? Quando é que tu pagou nem que fosse um vintém? Esse dinheiro só sai de minha mão para a do senhor Edgard.
Juro que pago amanhã, hoje estou precisado de verdade, é caso de vida ou de morte. Juro que amanhã eu mesmo compro um rádio para você e tudo mais que tu quiser… Pelo menos cem mil-réis…
- Nem um tostão…
- Tem paciência, meu bem, só essa vez…
- Nem um tostão… – repetia como se não soubesse dizer outra coisa.
- Ouve…
- Nem um tostão…
Toma cuidado, não brinca comigo porque, se não for por bem, vai ser por mal…
Disse e olhou em torno como a localizar o esconderijo. Eis que dona Flor perdeu a cabeça e, em desespero, se para o velho aparelho de rádio; junto às gastas válvulas ocultara o dinheiro. Vadinho a seguira, ela porém já segurava as cédulas desafiando-o aos berros:
- Esse tu não vai gastar no jogo. Só se me matar…
- Por que não diz logo ao que veio? Ou pensa que não sei?
Sério e triste o rosto de Vadinho; vinha porque tinha de vir, porque nada conseguira em parte alguma, mas não vinha contente, de peito aberto e riso solto, ah! se pudesse não vir!
Também ele sabia o destino que dona Flor pensara dar àquele dinheiro. Seu Edgar Vitrola ainda não aparecera, pois o antigo aparelho continuava na sala como Vadinho constatou ao abrir a porta. Mas podia aparecer a qualquer momento com a oitava maravilha do mundo, beleza de móvel em pau marfim e metal cromado, última palavra em maquinaria, em ondas e faixas, em quiloates e voltagens, capaz de captar as mais longínquas emissoras, as do Japão e as da Austrália, as de Addis-Abeba e de Hong-Kong, sem esquecer os subversivos programas de Moscovo, tanto mais proibidos quanto mais procurados. Dona Flor mandara recado urgente a seu Edgard, por intermédio de Camafeu, tocador de berimbau e companheiro inseparável de Vitrola.
Primeiro no bonde, com seu palpite e sua vergonha, depois a pé pela rua, viera Vadinho partido em dois. Um na pressa de chegar antes do vendedor de rádios, nunca um palpite o possuíra tanto assim; o outro no desejo de chegar tarde após seu Edgard, não mais encontrando nem o rádio velho nem os cobres pagos por dona Lígia, dinheiro ganho por sua mulher à custa de trabalho e de suor: atravessara a noite junto ao forno, após um dia sem descanso. Partido em dois, no bonde; vindo pela rua, entrando em casa, abrindo a porta: partido em dois. Se seu Edgard não tivesse passado, que sinal mais certo da infalibilidade do palpite?
Mas se já encontrasse o novo aparelho, ficaria em casa naquela noite, ao lado de dona Flor, estreando-o ouvindo música, rindo com as piadas. Partido em dois, dividido pelo meio, assim viera Vadinho.
Por que seu Edgard não passara antes? Agora não tinha mais remédio.
- Tu pensas que é só por interesse que eu te agrado?
- Só por interesse e nada mais…
Apenas interesse, vil interesse; retesava-se dona Flor:
- Por que não fala logo?
Um muro os separava naquela hora do crepúsculo quando a tristeza irrompe no horizonte em cinza e em vermelho, quando cada coisa e cada vivente morre um pouco no morrer do dia.
- Já que é assim tu vai emprestar nem que seja duzentos mil réis.
- Nem um tostão…Tu não vai ver nem um tostão…Como tu ainda tem coragem de falar em empréstimo? Quando é que tu pagou nem que fosse um vintém? Esse dinheiro só sai de minha mão para a do senhor Edgard.
Juro que pago amanhã, hoje estou precisado de verdade, é caso de vida ou de morte. Juro que amanhã eu mesmo compro um rádio para você e tudo mais que tu quiser… Pelo menos cem mil-réis…
- Nem um tostão…
- Tem paciência, meu bem, só essa vez…
- Nem um tostão… – repetia como se não soubesse dizer outra coisa.
- Ouve…
- Nem um tostão…
Toma cuidado, não brinca comigo porque, se não for por bem, vai ser por mal…
Disse e olhou em torno como a localizar o esconderijo. Eis que dona Flor perdeu a cabeça e, em desespero, se para o velho aparelho de rádio; junto às gastas válvulas ocultara o dinheiro. Vadinho a seguira, ela porém já segurava as cédulas desafiando-o aos berros:
- Esse tu não vai gastar no jogo. Só se me matar…
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